Entrevista com Dra. Evelyn Eisenstein e Dr. Eduardo Jorge Custódio da Silva, por Camila Pintarelli

Esta entrevista foi realizada originalmente em português em outubro de 2023.

Dra. Evelyn Eisenstein é médica Pediatra (CRM 52-17387-0), filiada à Sociedade Brasileira de Pediatria e  à International Pediatric Association, é Coordenadora do Centro de Estudos Integrados, Infância, Adolescência e Saúde – CEIIAS (www.ceiias.org.br) e da Rede ESSE Mundo Digital (www.essemundodigital.com.br).

Dr. Eduardo Jorge Custódio da Silva – Médico Neuropediatra (CRM 52-52459-8), Professor Adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Coordenador da Rede ESSE Mundo Digital (www.essemundodigital.com.br)

Camila Pintarelli: A sociedade mundial está experimentando mudanças comportamentais derivadas do uso da tecnologia, especialmente de aparelhos portáteis, como tablets e telefones celulares. O acesso digital facilitado também está impactando na rotina das crianças e dos adolescentes. Na área da pediatria, quais foram os principais impactos que o acesso digital à criança e ao adolescente trouxeram em termos de diagnósticos e acompanhamento clínico nos últimos dez anos?

Dr. Eduardo Jorge Custódio da Silva: O acesso digital constante tem impactado a saúde mental das crianças e adolescentes. Houve um aumento nos diagnósticos de distúrbios relacionados ao uso excessivo de tecnologia, como o Transtorno do Jogo na Internet, a Nomofobia (medo de ficar sem o celular) e a dependência em redes sociais, além do uso excessivo de video-games. Embora haja aplicativos educacionais valiosos, o uso excessivo de dispositivos eletrônicos pode afetar o desenvolvimento cognitivo e a atenção das crianças. Observa-se um impacto no aprendizado e concentração, o que pode levar a diagnósticos de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em alguns casos. A exposição aos conteúdos prejudiciais, cyberbullying e a pressão das mídias sociais contribuíram para o aumento dos diagnósticos de depressão e ansiedade entre os jovens. Além disso, o uso prolongado de dispositivos eletrônicos muitas vezes leva a um estilo de vida sedentário e sem exercícios ou atividades esportivas, contribuindo para o aumento do sobrepeso e obesidade.

Camila: O cérebro da criança e do adolescente precisa de estímulos específicos para o seu desenvolvimento. Há indícios de que a forma pela qual o acesso digital está ocorrendo nesta faixa etária pode estar impactando diretamente o desenvolvimento cerebral dos jovens?

Dr. Eduardo Jorge Custódio da Silva: Sim, há evidências de que a forma como o acesso digital precoce e prolongado que está ocorrendo na faixa etária de crianças e adolescentes pode estar impactando diretamente o desenvolvimento cerebral. Estudos de neuroimagem funcional sugerem que o uso excessivo de dispositivos eletrônicos pode estar associado às diversas alterações na estrutura do cérebro. Por exemplo, o uso frequente de jogos e aplicativos pode afetar as áreas do cérebro como o lobo frontal, responsável pela atenção, concentração e controle dos impulsos. Ainda, o uso intensivo das redes sociais e da comunicação digital pode impactar o desenvolvimento das habilidades sociais e emocionais em crianças e adolescentes. Eles podem passar mais tempo interagindo online do que em interações sociais reais, o que pode influenciar o desenvolvimento das habilidades interpessoais de sociabilidade. É importante notar que a relação entre o uso de tecnologia digital e o desenvolvimento cerebral não é necessariamente negativa em todos os casos: a tecnologia também pode ser usada de maneira construtiva para promover o aprendizado, a criatividade e o desenvolvimento de habilidades. No entanto, é fundamental que os pais, educadores e profissionais de saúde estejam atentos ao equilíbrio entre o uso de tecnologia e outras atividades importantes para o desenvolvimento do sistema nervoso. E o estímulo específico e mais impactante é sempre o afetivo, na conversa e na interação positiva e satisfatória, não-violenta com os pais e familiares.

Camila Pintarelli:: Muito se fala atualmente sobre “tempo de tela”. O que essa expressão engloba? O excesso de exposição a telas apresenta quais riscos à criança e ao adolescente?

Dr. Eduardo Jorge Custódio da Silva:  A expressão "tempo de tela" se refere à quantidade de tempo que uma criança ou adolescente passa interagindo com os mais variados dispositivos eletrônicos. Caracteriza-se como excesso a exposição superior a 4-5 horas por dia de forma ininterrupta (o que equivale a mais de 20% do dia de 24h) ou a prática de “virar a noite” jogando vídeo-games. Outro aspecto fundamental para a caracterização do excesso é verificar se o jovem está deixando de fazer as atividades de rotina, como por exemplo, se alimentar, dormir, brincar ou estar e conversar com os pais ou amigos, fora do ambiente virtual. O excesso de exposição às telas pode apresentar vários riscos para crianças e adolescentes, incluindo:

  1. a) Problemas de Saúde Física: Sedentarismo, Obesidade, Riscos visuais, Ricos auditivos, Riscos ortopédicos;
  2. b) Problemas de Saúde Mental: Distúrbios de Sono, Isolamento Social, Risco de Depressão e Ansiedade, Transtornos de conduta, Transtornos do déficit da atenção;
  3. c) Problemas de Aprendizado e Desenvolvimento;
  4. d) Problemas de Segurança e Privacidade.

Vale destacar que nem todo tempo do uso de tela é prejudicial, pois a qualidade do conteúdo e o equilíbrio são fundamentais. A tecnologia pode ser usada de maneira construtiva ao aprendizado, à criatividade e à comunicação. Nesse sentido, muitos aplicativos e jogos educacionais podem ser benéficos. Devemos encontrar um equilíbrio saudável entre o tempo de tela e outras atividades essenciais, como exercícios, interações sociais e leitura.

Para lidar com os riscos associados ao excesso de tempo de tela, é importante que os pais, cuidadores e educadores estabeleçam limites de tempo de tela apropriados, supervisionem o conteúdo acessado, eduquem as crianças sobre segurança online e como bloquear conteúdos inapropriados ou mensagens de estranhos e desconhecidos.

Camila Pintarelli:: Há correlação entre o “tempo de tela” e a saúde mental da criança e do adolescente?

Dr. Eduardo Jorge Custódio da Silva: Sim, existe uma correlação entre o "tempo de tela" e a saúde mental de crianças e adolescentes.

O uso excessivo de dispositivos eletrônicos e o tempo gasto em frente às telas têm sido associados a uma série de problemas de saúde mental nessa faixa etária. Aqui estão alguns dos principais pontos de correlação:

  1. a) Depressão e Ansiedade: Estudos científicos, na literatura internacional demonstram que o uso excessivo de mídias sociais e a exposição a conteúdo inadequado online estão relacionados a um aumento no risco de depressão e ansiedade em crianças e adolescentes. A comparação constante com os outros com baixa autoestima nas mídias sociais e a exposição a cyberbullying são fatores de risco.
  2. b) Problemas de Sono: O uso de telas antes de dormir, devido à luz de LED ou “onda azul” emitida pelos dispositivos eletrônicos, pode perturbar o ritmo circadiano, por bloqueio da produção da melatonina e levar aos distúrbios do sono. A falta de sono de qualidade está associada a problemas de saúde mental, como a depressão. O sono é um dos elementos essenciais durante o processo de crescimento e desenvolvimento de crianças e adolescentes.
  3. c) Isolamento Social: O uso excessivo de dispositivos eletrônicos pode levar ao isolamento social, uma vez que as crianças e adolescentes podem optar por interações online em vez de interações sociais face a face. O isolamento social está relacionado aos problemas de saúde mental.
  4. d) Estresse e Pressão Social: As mídias sociais podem criar uma pressão para que os jovens se encaixem em determinados padrões de beleza, estilo de vida ou popularidade. Isso pode causar estresse e ansiedade.
  5. e) Comportamento de Risco Online: A exposição a conteúdo prejudicial, interações negativas e riscos online, como o compartilhamento de informações pessoais, pode causar ansiedade e estresse, especialmente se a criança ou o adolescente não estiver preparado para lidar com esses desafios e saber bloquear mensagens indevidas ou “grooming”, que é a sedução online praticada por predadores para “fisgar” e depois abduzir ou chantagear esta criança ou adolescente a praticar, por exemplo, “nudes” e enviar imagens ou vídeos que irão circular nas redes de pornografia e serem monetizadas.
  6. f) Redução de Atividades Físicas: O tempo de tela excessivo muitas vezes está associado à redução das atividades físicas, o que, por sua vez, pode afetar a saúde mental. A atividade física é conhecida por ter benefícios positivos na saúde menta, na conquista da autonomia, além do desenvolvimento da coordenação psicomotora.
  7. g) Problemas de Aprendizado: O uso excessivo de dispositivos eletrônicos pode afetar a concentração e a capacidade de aprendizado, o que pode levar a frustração e ansiedade em relação ao desempenho acadêmico.

Embora haja correlações entre o tempo de tela e problemas de saúde mental, é importante destacar que a relação é complexa e não se aplica a todos os indivíduos da mesma forma. Alguns jovens podem usar dispositivos eletrônicos de maneira equilibrada e saudável, enquanto outros podem ser mais suscetíveis a esses riscos. A chave está, como disse anteriormente, em encontrar um equilíbrio saudável no uso da tecnologia e em promover a educação sobre a saúde mental e o uso responsável de dispositivos eletrônicos. Os pais, profissionais de saúde e educadores desempenham um papel fundamental ao orientar, mediar e estabelecer limites apropriados, supervisionar o uso de dispositivos e fornecer apoio emocional às crianças e adolescentes.

Camila Pintarelli:: Há políticas públicas no Brasil voltadas a regular ou, ao menos, orientar a exposição da criança e do adolescente às telas?

Dr. Eduardo Jorge Custódio da Silva: Sim, no Brasil existem algumas políticas públicas e diretrizes voltadas para orientar a exposição de crianças e adolescentes às telas, principalmente com o objetivo de promover um uso seguro e equilibrado da tecnologia. Algumas dessas políticas e iniciativas incluem:

  1. a) Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): Embora o ECA não trate especificamente do uso de telas, ele estabelece princípios gerais para proteger os direitos das crianças, dos crimes, inclusive online, o que pode ser aplicado ao contexto digital.
  2. b) Classificação Indicativa: O Ministério da Justiça e Segurança Pública é responsável pela classificação indicativa de conteúdos audiovisuais, como programas de TV e filmes. A classificação ajuda os pais a fazer escolhas informadas sobre o que é apropriado para seus filhos assistir.
  3. c) Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD): A LGPD regula o tratamento de dados pessoais, o que é relevante para a proteção da privacidade de crianças e adolescentes online. Ela estabelece diretrizes para o uso de dados e exige consentimento dos pais para o tratamento de dados de menores.
  4. d) Programa Saúde na Escola (PSE): O PSE é uma iniciativa que visa promover a saúde de crianças e adolescentes na escola. Ele pode incluir atividades relacionadas ao uso responsável da tecnologia e à conscientização sobre questões de saúde mental.

Atualmente, existe um grupo de trabalho de especialistas junto à Secretaria de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (SPDIGI/SECOM-PR) debatendo e produzindo um Guia de Orientação para o uso consciente das telas com apoio do Ministério da Educação e da UNESCO.

Camila Pintarelli:: No dia 25 de outubro de 2023, o CGI.br lançou nova pesquisa TIC Kids Online, trazendo ampla análise estatística sobre o acesso digital da criança e do adolescente no Brasil. Quais dados que chamam atenção na pesquisa e que denotam preocupação médica?

Dra. Evelyn Eisenstein: Antes de mais nada, é importante ressaltar que essa pesquisa tem sido realizada, a cada ano, desde 2012, demonstrando tendências e recortes da população brasileira das 5 regiões e das 5 classes socioeconômicas. É, portanto, uma pesquisa bastante representativa das crianças entre 9 e 17 anos.

Na pesquisa de 2023, a amostra compreendeu 2.704 crianças e adolescentes, e suas famílias, que responderam ao questionário padrão e aplicado em visitas domiciliares (ver os principais dados e resultados em www.cetic.br). mUm dos dados preocupantes é a idade do primeiro acesso à internet antes dos 9 anos de idade, que aumentou de 27% em 2015 para 43% em 2023, e da frequência do uso mais de uma vez ao dia, que passou de 68% em 2015 para 83% em 2023. Outro dado também preocupante é aquele que indica que 88% dos jovens possuem perfil em plataformas digitais, sendo certo que esse percentual sobe para 99% quando se trata da faixa etária entre 15 a 17 anos.

Mas o dado mais preocupante, na minha percepção, é aquele que indica que 9% dos usuários entre 9 e 17 anos que já viram imagens e vídeos de conteúdo sexual, sendo que, desse total, 34% aponta que as “imagens aparecem sem querer” e 26% indica que esse contato ocorre nas redes sociais.

Camila Pintarelli: Um dos pontos que a pesquisa TIC Kids Online aborda é o uso de filtros de controle parental em plataformas virtuais. Qual a importância do uso de tais filtros para prevenir questões relacionadas à saúde mental e física da criança e do adolescente?

Dra. Evelyn Eisenstein: Realmente, o uso de filtros é importante para se tentar controlar não só o tempo de uso (o chamado “tempo de tela”, como falado anteriormente), mas também os conteúdos e mensagens inapropriadas à vista da idade e da maturidade emocional da criança e do adolescente. No entanto, a melhor medida de segurança, no meu ponto de vista, é sempre o diálogo, uma conversa franca e assertiva entre os pais e seus filhos sobre segurança e privacidade online e nas telas, lembrando aos jovens que a internet é um espaço público, onde qualquer imagem ou mensagem são capazes de circular ao redor do mundo em menos de 48 horas. Riscos existem e devem ser prevenidos, cabendo lembrar que a responsabilidade legal e moral é das famílias até seus filhos completarem 18 anos, idade da maioridade penal.

Camila Pintarelli: Hoje em dia, o uso da inteligência artificial e da inteligência artificial generativa está disseminado em escala comercial. Muitas plataformas acessadas por crianças e adolescentes, além de se valerem de inteligência artificial, não possuem design feito para esse público específico. Esses detalhes contribuem em que medida para problemas de saúde dos jovens?

Dra. Evelyn Eisenstein: As plataformas de inteligência artificial aumentaram e aceleraram os riscos, ao invés de se preocuparem com as características de maturação de qualquer criança ou adolescente. Tais tecnologias usam e agrupam os dados sem qualquer critério ético ou ignoram a necessidade do chamado “By design”, isto é, construções direcionadas e feitas sob medida ao público infanto-juvenil. Além disso, destaco que tudo vem sendo “monetizado” e comercializado, visando ao lucro de grupos e empresas de tecnologia, as chamadas BigTechs. Com certeza, os riscos à saúde serão aumentados, ao que acresço também o risco de se aumentar as diferenças e as segmentações das classes e dos grupos sociais minoritários.

Camila Pintarelli: A discussão em torno da regulamentação do uso da inteligência artificial no Brasil precisa perpassar por debates específicos em relação à saúde da criança e do adolescente? Em que medida e quais pontos vocês entendem que precisariam de atenção especial do legislador?

Dra. Evelyn Eisenstein:  Os legisladores precisam, antes de mais nada, de atualização sobre as tecnologias de informação e computação que estão sendo utilizadas por crianças e adolescentes. Precisam, também, ter como norte o artigo 227, da Constituição Federal, que preconiza de forma expressa a prioridade absoluta de crianças e adolescentes à saúde, à educação e ao lazer, de forma a estender esse raciocínio constitucional ao uso das tecnologias. Além disso, precisam se organizar e realizar reuniões e grupos de trabalho com os especialistas nas áreas da pediatria e comportamento/psicologia, contando com o apoio da área de direito digital. Ouvir especialistas da área médica e psicológica é, no meu ponto de vista, essencial. E, por fim, penso que devem inserir na pauta e nas agendas os recursos públicos e humanos necessários para campanhas públicas de educação digital, além de investirem na educação dos próprios educadores nas escolas. Exemplos e modelos de outros países e documentos da ONU (via UNESCO, UNICEF e Comitê dos Direitos das Crianças) já existem e devem ser consultados, como forma de garantir efetividade destas recomendações internacionais no cotidiano da população brasileira.

Camila Pintarelli: O conceito de proteção integral da criança e do adolescente, previsto na Constituição Federal, pode ser relido na atual era digital a fim de englobar, também, proteção integral mental diante dos avanços tecnológicos?

Dra. Evelyn Eisenstein:  Sim, a cada dia deve ser lido, relido e praticado o quanto disposto no artigo 227, da Constituição Federal, sobre a prioridade absoluta à proteção integral de crianças e adolescentes, fazendo-o no contexto digital. Já temos 33 anos do Estatuto da Criança e Adolescente e ainda há muitos obstáculos na alocação de recursos, capacitação de conselheiros tutelares, por exemplo, ou ações de prevenção de riscos nos municípios brasileiros, principalmente de alta densidade populacional

Camila Pintarelli: Vocês enxergam a possibilidade de envolver órgãos reguladores da área da saúde do Brasil (Anvisa, ANS p.ex.) no debate sobre o acesso digital do jovem? Em caso afirmativo, quais iniciativas regulatórias (e, portanto, infralegais) poderiam auxiliar no controle do acesso e diminuir o impacto da exposição virtual à saúde mental da criança e do adolescente?

Dra. Evelyn Eisenstein:  Sim, com certeza. Temos trabalhado a cada oportunidade para isso em parcerias com a Sociedade Brasileira de Pediatria, assim como no grupo de especialistas do CGI-CETIC.br, além de consultas, quando solicitadas por outros representantes de órgãos governamentais, a exemplo da SEIDIGI-SECOM e do CASC da Classificação Indicativa do Ministério da Justiça. Cito, também, a “Coalizão Brasileira para o Fim da Violência”, a “Rede Universitária de Telemedicina – RUTE” e a “Rede ESSE Mundo Digital” (www.essemundodigital.com.br). Por fim, gostaria de ressaltar que a internet é um espaço público e global, onde as crianças e adolescentes não devem ser alvo de algoritmos sem controle, sem supervisão ou sem ética ao se clicar em qualquer tela. A responsabilidade é de todos os adultos numa sociedade cada vez mais global e conectada.