CARTA DO REPOSITÓRIO: EDUCAÇÃO

CARTA DO REPOSITÓRIO: EDUCAÇÃO

Justificativa das indicações bibliográficas da frente “Educação”

 

A seleção de textos deste repositório apresenta artigos, capítulos de livros e diretrizes governamentais com perspectivas diversas sobre os desdobramentos das tecnologias de Inteligência Artificial (IA) no campo da Educação. Sem a pretensão de fazer uma cobertura exaustiva dos temas tratados no encontro destes dois campos, pretendemos oferecer um olhar amplo e introdutório sobre assuntos fundamentais para pensar o uso de IA em Educação, e as questões éticas, pedagógicas e de interesse público que emergem a partir dele. Os textos escolhidos são abrangentes o suficiente para permitir a reflexão acerca de processos da educação básica, profissional e tecnológica, superior, e mesmo da educação não-escolar ou não-formal.

É importante esclarecer que, talvez com exceção da agenda de pesquisa conduzida pela International Artificial Intelligence in Education Society (AIED – Sociedade Internacional de Inteligência Artificial na Educação), ativa desde 1993 e com um grau de maturidade de organização institucional elevado, não existe um campo claramente delimitado de estudos sobre IA e Educação. Os pesquisadores da AIED têm se dedicado a estudar a aplicação de técnicas e conceitos de inteligência artificial no desenho de sistemas que apoiem a aprendizagem, e sua produção acadêmica tem sido prolífica. Entretanto, é necessário reconhecer o campo da Educação como amplo o bastante para acomodar interesses públicos, demandas sociais e perspectivas analíticas diversas. Assim, trazemos nesse conjunto de textos abordagens que vão desde a pesquisa e desenvolvimento de aplicações da IA como forma de ampliar os limites das atividades de ensino e aprendizagem, até preocupações com formulação de currículo, formação docente, questões éticas e políticas, e diretrizes para a governança pública da integração de IA em sistemas de ensino. Por fim, vale dizer que a produção de conhecimento sobre estas questões no Brasil ainda é menos intensa e mais recente do que em países do norte global, o que significa que a maioria dos textos selecionados está em inglês.

A organização proposta para a leitura dos textos combina a cronologia de sua publicação com um agrupamento temático. Desta forma, ao mesmo tempo que tentamos seguir a ordem temporal dos debates considerados relevantes, subvertemos essa ordem quando a aproximação pelo modo de tratamento dos temas é importante para o entendimento dos leitores.

Sugerimos iniciar a leitura com os textos de Doroudi, que embora publicados mais recentemente (2022 e 2023), fornecem uma introdução e um panorama histórico e conceitual de como as áreas da AIED e das Ciências da Aprendizagem nasceram em consonância com o desenvolvimento da IA, se desenvolveram em direções distintas, e hoje tratam o tema da IA em Educação de formas que, para o autor, deveriam se reencontrar. A seguir, Roll & Willie (2016) oferecem um balanço da agenda de pesquisas da AIED, relatando os principais avanços desta área até a primeira década do século 21. O texto de Luckin et al. (2016), por sua vez, embora não tenha um caráter propriamente científico, merece ser lido pois marca o posicionamento geral da agenda AIED sobre o papel da IA em Educação, e teve ampla circulação entre atores educacionais do norte global.

A partir de fins da década de 2010, com a intensificação do uso das tecnologias de IA e o início de uma circulação mais intensa do tema nos meios de comunicação, o uso de IA para fins educacionais entrou na pauta das organizações multilaterais e de alguns governos. As convenções, manuais e diretrizes que a Unesco têm publicado a partir da realização do Consenso de Beijing sobre Inteligência Artificial e a Educação (2019) têm servido como referência para o debate público sobre o tema e para a formulação de políticas públicas e pesquisas, embora sejam ainda pouco popularizados no ecossistema educacional brasileiro. Recomendamos a leitura do texto resultante do Consenso de Beijing, e dos guias Inteligencia artificial y educación – Guía para las personas a cargo de formular políticas (2021, disponível tanto em espanhol como em inglês) e Currículos de IA para a educação básica (2022), todos eles publicados pela Unesco. Esses documentos retratam a preocupação da Unesco com uma “abordagem de IA centrada no ser humano”, apontam preocupações éticas e de segurança de dados, e fornecem subsídios para discussão de políticas públicas, desenho e implementação de currículos, e impactos sociais dessas tecnologias.

Na mesma direção, o documento publicado pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos em 2023, Artificial Intelligence and the Future of Teaching and Learning: Insights and Recommendations, sintetiza a perspectiva de educadores, pesquisadores e policy makers estadunidenses sobre as oportunidades, riscos e desafios do ponto de vista dos sistemas educacionais e da formulação e implementação de políticas públicas. Numa perspectiva de produção européia, o Suplemento ao Quadro DigCompEdu, publicado pelo projeto AI Pioneers em 2023 e financiado pela União Européia, complementa as orientações e diretrizes para qualificação e formação de educadores em competências digitais presentes no documento DigCompEdu de 2017, especificando as competências e habilidades próprias à interação com sistemas de IA.

A partir de 2023, a popularização dos modelos de IA generativa baseada em Large Language Models (LLMs), marcada pelo lançamento do produto Chat GPT pela Open AI em novembro de 2022, pode ser vista como um novo momento nas reflexões (e preocupações) acerca da integração da IA em educação. Neste sentido, recomendamos a leitura de três textos para uma compreensão inicial sobre as interações da IA generativa com processos e práticas educacionais. A revisão sistemática realizada em 2023 por Yan et al apresenta um conjunto significativo de casos de usos destes modelos em educação, delineia o estado atual das pesquisas sobre a aplicabilidade educacional dos LLMs, e aponta aspectos considerados relevantes para o desenvolvimento tanto da agenda de pesquisa como de ferramentas. -A seguir, o artigo de Hwang, Lee e Shin apresenta a ideia de “letramento em prompt”, que vem sendo tratada como uma nova faceta, própria da era da IA generativa, a ser somada aos estudos de letramento digital e multiletramentos. Por fim, o guia da Unesco Guidance for generative AI in education and research (2023) complementa a visão já apresentada pela organização em anos anteriores, agora com o olhar voltado para essa nova categoria da IA.

Para marcar uma abordagem mais crítica, selecionamos alguns textos que partem de perspectivas distintas sobre os desdobramentos sociais e educacionais do digital, de forma ampla, e da IA, de forma particular. Embora não trate especificamente de IA, o livro The Platform Society (2018) de Van Djick, Poell e De Wall, tem origem nos estudos de mídia (media studies), e oferece no capítulo 6 uma introdução à ideia de plataformização de serviços e processos educacionais, sem a qual não é possível compreender integralmente os mecanismos pelos quais os produtos e tecnologias educacionais (edtechs) com base em arquiteturas de IA vêm penetrando os sistemas escolares.

 Numa chave sociológica, Neil Selwyn alinha-se à recente agenda da Sociologia Digital para apresentar, já em 2013, uma perspectiva a partir dos estudos críticos sobre tecnologias educacionais (critical edtech studies), que se apoiam, por um lado, nos questionamentos tradicionais da Sociologia da Educação acerca do papel dos sistemas e práticas educacionais na produção, reprodução e transformação de desigualdades educacionais; e por outro, nos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (Science and Technology Studies – STS). Essa abordagem crítica dos processos sociotécnicos é o ponto de partida para Selwyn enfocar fenômenos da automação de processos escolares em dois momentos posteriores. Em Should Robots Replace Teachers? (2019), a mirada crítica aparece na pergunta que rompe com o sentido de inevitabilidade tecnológica: os tutores inteligentes e sistemas automatizados deveriam substituir os professores? Já no capítulo intitulado Less work for the teacher? (Menos trabalho para o professor?), presente em uma coletânea de textos sobre automação da vida social publicada em 2022, a interrogação permanece, dessa vez partindo de um estudo de caso empírico para colocar em xeque uma promessa muito presente na comercialização de ferramentas educacionais com base em IA: a otimização da carga de trabalho docente.

Por fim, o texto de Buzato (2023) faz uma crítica dos determinismos tecnológicos a partir da perspectiva da lingüística aplicada pós-humanista, decompondo a ideia de personalização dos artefatos de inteligência artificial (IA) construída a partir do uso de termos como “inteligência” e “linguagem”, e propondo a noção de “assemblagens” como recurso para construir uma relação mais transparente e produtiva das relações entre IA e humanos nas práticas e políticas educacionais.

REPOSITÓRIO

 Doroudi, S. (2023). The Intertwined Histories of Artificial Intelligence and Education. International Journal of Artificial Intelligence in Education, 33, 885–928.

___________. (2023) What happened to the interdisciplinary study of learning in humans and machines? Journal of the Learning Sciences, 32:4-5, 663-68.

Roll, I.; Wyllie, R. (2016). Evolution and Revolution in Artificial Intelligence in Education. International Journal of Artificial Intelligence in Education, 26, 582–599.

Luckin, R. et al. (2016). Intelligence Unleashed. An argument for AI in Education. Pearson.

Unesco. (2019). Beijing Consensus on Artificial Intelligence and Education. The United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.

Unesco. (2021). Guía para las personas a cargo de formular políticas. The United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.

Unesco. (2022). Currículos de IA para a educação básica. The United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.

U.S. Department of Education, Office of Educational Technology. (2023). Artificial Intelligence and Future of Teaching and Learning: Insights and Recommendations. Washington, DC.

Bekiaridis, G. (2023). Suplemento ao Quadro DigCompEdu. EACEA.

Yan et al (2023). Practical and Ethical Challenges of Large Language Models in Education: A Systematic Scoping Review. British Journal of Educational Technology, 55, 90-112.

Hwang, Lee, Shin (2023). What is prompt literacy? An exploratory study of language learners’ development of new literacy skill using generative AI. arXiv:2311.05373

 Unesco (2023).Guidance for Generative AI on Education and Research.The United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.

van Djick, J.; Poell, T.; de Waal, M. (2018). The Platform Society. Oxford University Press.

Selwyn, N. (2013). Rethinking Education in the Digital Age. In: Orton-Johnson, K., Prior, N. The Palgrave Macmillan Digital Sociology. Critical Perspectives. Palgrave Macmillan.

________. (2019). Should robots replace teachers? AI and the future of education. Polity Press.

________. (2022). Less work for the teacher? The ironies of automated decision-making in schools. In: Pink, S. et al (Eds). Everyday automation: experiencing and anticipating automated decision-making. Routledge.

Buzato, M. (2023). Inteligência artificial, pós-humanismo e Educação: entre o simulacro e a assemblagem. Dialogia, 44, 1-20.