Vulnerabilidades Cognitivas no Mundo Atual : Desafios do pensamento na era das revoluções tecnológicas Digital
O que estamos vivenciando enquanto revolução tecnológica parece ser a última fronteira da expropriação capitalista que agora se transmuta em capitalismo cognitivo. Ficamos praticamente duas décadas fornecendo gratuitamente nossos dados pessoais que, submetidos ao tratamento informático tornaram-se passíveis de estratégias mercadológicas sobre gostos, tendências, comportamentos, e agora, nossos pensamentos. Portanto, uma sobrecodificação das semióticas do próprio capitalismo pelas grandes corporações que territorializam os signos impedindo que o pensamento flua em seu nomadismo. No que você está pensando? pergunta-nos escancaradamente Mark Zuckerberg!
Duas características se podem identificar nas transformações acarretadas pelas últimas revoluções tecnológicas: a aceleração vertiginosa de todas as categorias indicadas na sociologia de Hartmut Rosa (tecnológica, social e do ritmo de vida); bem como o esmagamento existencial do indivíduo no espaço-tempo do mundo virtual que é simultâneo e sem distâncias, gerando excesso de conteúdos prontos para consumo de todas as ordens, portanto em plena desordem, bem como representações de cotidianos situacionais cuja exposição por si denotam uma inversão quase escandalosa entre o privado e o público; ou ainda a ampliação do alcance de ressonância das reações cognitivas e sociais quanto a tais representações, tornando agressivos e/ou violentos os modos de solução de conflitos que se tornam massificados e, ao mesmo tempo, impessoais, virtualmente próximos, ao mesmo tempo que atualmente distantes e incomunicáveis; transformações estas que, como já se pode perceber, de modo algum favorecem a valorização e o cultivo da dignidade ou da cidadania.
De outro lado, deve-se acrescentar que os desenvolvimentos científicos e tecnológicos desprovidos de um mínimo ético e, uma vez capturados pela lógica do lucro capitalista, põem em risco os próprios potenciais de desenvolvimentos civilizatório, naquilo que Toby Ord da Universidade de Oxford chama de catástrofe existencial e risco existencial: a primeira sendo a destruição dos potenciais de longo prazo da humanidade; o segundo sendo o risco que ameaça aqueles potenciais.
Em seu livro O Precipício (ORD, 2020. p. 142), argumenta que podemos estar atingindo certos limiares que nos colocam nessas posições, por força de avanços tecnológicos como as IA’s. A principal preocupação é com a questão do alinhamento das IA’s, que é relativa ao problema das valorações humanas e as atuações das funções das máquinas. Como os níveis de complexidade dos modos em que os humanos valoram o mundo ao seu redor é de difícil determinação, fica, portanto, praticamente impossível que possamos atingir a plena satisfação daquele alinhamento e suas implicações no nível da computação e suas técnicas.
Algumas tecnologias atuais embotam também o sentido de responsabilidade coletiva, com sua ênfase nos aspectos individuais e imediatistas reforçando comportamentos como bullying e os chamados cancelamentos digitais. No longo prazo tais alterações de padrões comportamentais não poderiam ensejar também o ocaso dos desenvolvimentos coletivos do próprio conhecimento?
Atualmente o ritmo das transformações fazem com que nossas percepções sobre o mundo se alterem ou mesmo se desfaçam! O conhecimento é construído aos poucos, coletivamente, muitas vezes até arduamente, com a colaboração de muitos em suas diferentes áreas; tecnologias disruptivas podem pôr tais desenvolvimentos em risco, uma vez que solapam as bases de tal progressão, seja pela quantidade exponencial de informação que o ser humano não dá conta de tratar com suas limitações, ou mesmo os ritmos acelerados de tais transformações.
Do que se trata, portanto, é identificar como o aumento das velocidades dos ritmos da vida tanto pessoal quanto social gerou impactos nos modos de pensar e agir humanos e como tais impactos se relacionam com as questões das vulnerabilidades cognitivas. Segundo Hartmut Rosa (ROSA, 2019, p. 447) tais incrementos nas velocidades causaram fragmentação e perda de controle da capacidade de compreensão e conformação de acontecimentos, tanto no nível individual quanto sociopolítico.
Este aumento de velocidade não se dá sem quaisquer obstáculos ou mesmo contraposições, mas é um movimento complexo que carrega consigo efeitos tanto da própria aceleração quanto de desacelerações como aqueles que são inerentes a fatores como os ambientais, os biológicos, os políticos, etc. A dinâmica do processo não é unidirecional ou constante, mas atravessada por ritmos díspares e muitas vezes contraditórios.
Não obstante isso, as situações em que se verificam as acelerações trazem mudanças importantes nos comportamentos, nas percepções, nos modos de organizar a vida coletiva e pessoais. As adaptações humanas a tais processos muito geralmente são acompanhadas de perdas e ganhos e por isso a necessidade de avaliações e reavaliações dos rumos que tomam, muitas vezes a partir de decisões em que a participação coletiva e democrática é negligenciada.
No que respeita ao problema das tecnologias cognitivas, há uma clara relação, como já visto acima, entre as quantidades, os ritmos e os hábitos (ou mesmo vícios) e os padrões cognitivos. Há também o fator etário que é muito importante ser observado em termos de vulnerabilidades, uma vez que os períodos de desenvolvimentos e formações biopsíquicas são impactados de modos diversos entre si. A faixa etária dos idosos, por exemplo, apresenta outro componente que é o uso de tecnologias novas que não são coerentemente absorvidas como novidades e neste descompasso aumentam os riscos de maus usos, mesmo que desavisadamente, ou de se tornarem vítimas de terceiros que se aproveitam dessas vulnerabilidades. É crescente no Brasil a utilização dessas tecnologias para a perpetração de crimes que visam lesar o patrimônio de pessoas vulneráveis seja por falsos empréstimos, sequestros, ou ainda extorsões e ameaças de várias naturezas.
O aumento dos ritmos sociais que agora passam a integrar redes de controle e vigilâncias maquínicos, podem gerar ansiedade ou mesmo depressão. A privacidade fica cada vez mais restrita à propriedade privada e os espaços públicos são controlados e vigiados, não raro, por empresas particulares que sem fiscalização ou controle podem usar vários dados coletados para práticas abusivas em termos comerciais ou mesmo financeiras.
O problema da proteção dos dados passa a ser crítico dando ensejo a um paradoxo que é o incremento das tecnologias de informação para resolver os problemas por elas mesmas gerados. Este foi um dos impulsos que alavancou o desenvolvimento das IA’s. Seres humanos não seriam capazes de tratar essa massa de dados gerada pelas tecnologias da informação e a instrumentalização do medo como fator de risco, possibilitou que práticas de controle e vigilância fossem implementadas, práticas estas que geram novas massas de dados que o capitalismo captura como nova sobrecodificação de comportamentos e hábitos.
O incremento das velocidades e o desaparecimento das distâncias intensificou relações sociais nem sempre saudáveis ou mesmo suportáveis gerando uma nova condição que, ao que tudo indica, vem causando graves desequilíbrios no desenvolvimento de uma psique saudável. O que se passa a conjecturar.
Uma das consequências mais flagrantes do processo de industrialização foi, de maneira geral, o aumento quantitativo de toda a produção humana. Os processos de produção industriais têm essa característica essencial por força dos avanços tecnológicos que também possibilitou e incentivou. De consequência a geração de excedentes padronizados foi sempre o objetivo do modelo. Não seria diferente com a produção da informação. Desde o aparecimento da imprensa houve aceleração e acúmulo de produção de informação causando verdadeira revolução no conhecimento.
Até bem pouco tempo, crianças e adolescentes tinham como substrato existencial primordial o mundo circundante, suas atividades corriqueiras como brincar, estudar, passear, se divertir se davam todas elas em conexão direta com o ambiente físico, com a interação presencial entre as pessoas, formando seus processos cognitivos a partir destes componentes.
Ocorre que recentemente parece que esta situação mudou trazendo impactos severos principalmente no processo cognitivo da atenção.
O psicólogo americano William James, em 1890, descreveu a atenção como “a posse pela mente, de forma clara e vívida, de um entre os aparentemente variados objetos ou linhas de pensamento possíveis. (...) Isso implica se afastar de algumas coisas para lidar de maneira mais eficaz com outras”. Acrescenta Jonathan Haidt que a “(A)tenção é a escolha que fazemos de nos manter em uma tarefa, um pensamento, um caminho mental, enquanto saídas atraentes nos chamam. Quando fracassamos em fazer essa escolha e nos permitimos desvios frequentes, acabamos no ‘estado confuso, atordoado e distraído’”.
Haidt aponta quatro prejuízos entre crianças e adolescentes (que também se estende aos adultos) que foram evidenciados por pesquisas científicas: privação social, privação do sono, atenção fragmentada e vício. Para ele, a partir de 2010 ocorre a mudança de padrão cognitivo, conceituada como A Grande Reconfiguração. A partir do surgimento dos smartphones e suas características físicas e estruturais, crianças e adolescentes ficaram expostos a tais prejuízos cognitivos, gerando uma verdadeira epidemia de distúrbios mentais entre essas faixas etárias.
Paradoxalmente, apesar de conhecidas pela expressão “redes sociais”, que em certo sentido bastante restrito podem assim ser consideradas, mas o uso abusivo no tempo de imersão do usuário nas ditas redes sociais pode levar ao isolamento e à depressão. O fato de as telas serem tão atraentes em relação à nossa atenção é o fator principal do isolamento social, pois ao invés de as relações se darem presencialmente no mundo da vida, são mediadas e neutralizadas pela tecnologia em duplo nível: do hardware e do software. O cérebro e a atenção deixam de estar voltados ao mundo que os cerca para se concentrarem no mergulho solitário e solipsista das telas.
Quanto à privação do sono os danos à saúde já são bem evidenciados e determinados e, se em adultos os efeitos se mostram importantes, em crianças e adolescentes podem ser devastadores. A portabilidade dos aparatos tecnológicos atuais faz deles um indutor de excesso de utilização, não importando mais os horários biológicos que ainda nos restam, tais como os do sono de noite. A luz das telas induz o organismo à perda do sono.
Quanto à atenção fragmentada, já referimos acima os malefícios, mas parece óbvio e fácil deduzir que a partir da fragmentação da própria tela, com informações espalhadas por toda sua superfície, literalmente ao alcance dos dedos, e que a cada toque faz surgir novas páginas e daí novas interações, tudo isto faz com que nossa atenção, na tentativa de integrar todos os pedaços em suas variações constantes de forma, cor, luminosidade, conteúdo, ritmo, tudo isto não pode ensejar concentração cognitiva pois a atenção não é capaz de evitar os desvios daqueles caminhos mentais previamente escolhidos, tornando-se dispersa e, de consequência, pouco produtiva cognitivamente falando. Para as importantes finalidades dos processos educativos os prejuízos são evidentes.
No que concerne aos vulneráveis, Haidt adverte que o “fluxo interminável de interrupções – a fragmentação constante da atenção – prejudica a capacidade dos adolescentes de pensar e pode deixar marcas permanentes em seu cérebro, que se reconfigura com rapidez”.
Assevera ainda que “os desenvolvedores desses aplicativos usam todos os truques da caixa de ferramenta dos psicólogos para prender os usuários tanto quanto os viciados em caça-níqueis”. Ou ainda, quando afirma mais adiante que essa “foi uma descoberta-chave do behaviorismo: é melhor não recompensar o animal todas as vezes que ele faz o que você quer. Se o recompensar em um esquema de razão variável (por exemplo, uma vez a cada dez, em média, porém às vezes mais e às vezes menos), você cria um comportamento mais forte e persistente”.
Como se percebe as estratégias agressivas de desenvolvedores de tais tecnologias e os produtores de conteúdos não se preocupam, a não ser quando sob ameaça de punições que possam surtir consequências severas, com pautas éticas de convivência ou de relações humanas dignas. As tentativas de regulamentação desse setor têm sido dificultadas pelo argumento da necessidade estratégica de essas empresas manterem a dianteira nestes processos para evitar que competidores de outros espectros ideológicos possam ultrapassar os ganhos e usos, principalmente na área militar, de tais atividades.
Neste sentido, Néstor Canclini aponta que as “palavras se transformam em signos de busca e se articulam algoritmicamente num panóptico eletrônico para o mercado, porque a informação que damos aos buscadores sobre nossos comportamentos, desejos e opiniões converte-nos em insumos mercantilizados”. (CANCLINI, 2021, p. 100).
Por isso a situação atual com as evidências surgindo em todos os países e comunidades indicando os riscos de maus usos dessas tecnologias, nos permite concluir que não só a regulamentação se faz necessária e urgente, bem como uma reformulação das políticas públicas com relação a tais tecnologias, inclusive e principalmente no âmbito da educação, na busca de conhecimento e consciência dos benefícios e riscos envolvidos.
Outro aspecto de suma importância é o problema que tais tecnologias vêm acarretando nos processos de votação nas democracias mundo afora. É cada vez mais preocupante a intensidade com que tais tecnologias vêm sendo usadas para desestabilizar sistema políticos pela disseminação de informações falsas, discursos de ódio ou ataques cibernéticos durante o processo eleitoral. As democracias estão em risco porque o voto pode já não representar, num futuro bem próximo, a vontade do próprio eleitor que, manipulado cognitivamente por estas tecnologias, corre o risco de se tornar um mero instrumento dos desideratos tirânicos totalitários de candidatos sem escrúpulos.
Se em nossa Constituição Federal encontramos o princípio da paternidade responsável (art. 227), é preciso que pais e tutores entendam seu dever de cuidado com relação aos vulneráveis, mas também que o Estado cumpra esta função de modo a evitar situações de exposição ao risco de crianças e adolescentes, bem como dos adultos em tais situações de vulnerabilidade, pois o que está em jogo, em última instância é não só a sobrevivência das comunidades políticas humanas (tomadas de decisões conscientes e livres), bem como de nossa própria espécie, como no caso dos riscos que parte da comunidade científica aponta quanto ao mau uso das atuais IA’s.
REFERÊNCIAS
Canclini, N. G. (2021). Cidadãos substituídos por algoritmos (D. A. Molina, Trad.). Editora da Universidade de São Paulo.
Haidt, J. (2024). A geração ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (L. Azevedo, Trad.). Companhia das Letras.
Ord, T. (2020). The precipice: Existential risk and the future of humanity. Hachette Books.
Rosa, H. (2021). Aceleração: A transformação das estruturas temporais na modernidade (R. H. Silveira, Trad.). Editora da Universidade de São Paulo.
