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Luca Belli é doutor em Direito Público pela Université Panthéon-Assas (2014) e mestre em Direito pela Università degli Studi di Torino. É professor e pesquisador em tempo integral da FGV Direito Rio, onde também coordena o Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS-FGV) e o projeto CyberBRICS. Atua nas áreas de governança da internet, proteção de dados e políticas digitais nos países do BRICS. Integra o Board da Alliance for Affordable Internet, é diretor da edição latino-americana da conferência Computers Privacy and Data Protection (CPDP LatAm) e editor da International Data Privacy Law Journal da Oxford University Press. Antes de ingressar na FGV, foi especialista em neutralidade da rede no Conselho da Europa.
Esta entrevista foi realizada em maio de 2025
O Brasil sofre com a falta de um pensamento sistêmico em relação às tecnologias digitais. “Estruturamos o conhecimento, a pesquisa e a regulação de maneira compartimentada. Estudamos como regular e produzir bancos de dados, software, hardware, ou tecnologia de equipamento de conectividade, mas não existe no Brasil um regulador que combine todas as dimensões do digital”, alerta Luca Belli, Diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e do CyberBRICS Project.
Ele explica que a fragmentação não permite enxergar a complexidade do sistema e acrescenta a necessidade de conectividade significativa para que a IA no país seja acessível a todos. “Os usuários brasileiros precisam ser conectados a toda Internet, e não ser conectado somente ao WhatsApp, Instagram e Facebook, como 78% da população brasileira”, afirma o acadêmico.
Belli, que recentemente deu a palestra “Soberania Digital em Tempos de Mudanças Geopolíticas: o Caso dos BRICS” no Instituto de Estudos Avançados da USP, é também organizador do livro “Digital Sovereignty in the BRICS Countries: How the Global South and Emerging Power Alliances are Reshaping Digital Governance”, publicado pela Cambridge University Press, em colaboração com a professora Min Jiang. Em contraste com o Brasil, ele aponta os exemplos de Índia e China, que adotaram abordagens sistêmicas para o desenvolvimento tecnológico.
Em sua perspectiva, os BRICS podem desempenhar papel de cooperação em direção ao avanço da soberania digital, ao menos em três formatos. Primeiro, em termos de políticas e regulação comum, com interoperabilidade legislativa. Segundo, iniciativas de pesquisa e desenvolvimento científico em projetos multilaterais. Terceiro, no uso e compartilhamento daquelas tecnologias em open source, em código aberto, que já existem.
“Não existe nesse momento outro grupo de governança global que tenha essa capacidade que o BRICS tem hoje. O G7 e o G20 estão totalmente paralisados neste momento pelos Estados Unidos. Não existe outro mecanismo de governança global de poucos países que podem dialogar entre eles e que depois tenham esferas de influência regional”, conclui o acadêmico.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista ao Understanding Artificial Intelligence (UAI) do Instituto de Estudos Avançados (IEA), da USP.
Nilson Brandão: O que entendemos por soberania digital e por que ela é importante para o Brasil?
Luca Belli: Na verdade, não é importante somente para o Brasil, é importante para todos. A reflexão sobre a soberania e a inteligência artificial vem de anos de estudos sobre a soberania digital. A primeira dificuldade é definir o que significa a soberania digital, porque não é um assunto universalmente definido. Baseado nas expressões desse conceito, sintetizamos como a capacidade de entender, desenvolver e regular a tecnologia, seja tecnologia digital ou sistemas de IA, para o pleno exercício dos próprios direitos e o controle sobre a tecnologia.”
Nilson Brandão: Quais são os principais desafios que o Brasil enfrenta na área de tecnologia digital?
Luca Belli: No Brasil é evidente uma falta de pensamento sistêmico. Ou seja, entender que tecnologias digitais e sistemas de IA são sistemas compostos de vários elementos: bases de dados, software, hardware, conectividade. O problema é que estruturamos o conhecimento, a pesquisa e a regulação de maneira compartimentada. Estudamos como regular e produzir bancos de dados, software, hardware, ou tecnologia de equipamento de conectividade, mas não existe no Brasil um regulador que combine todas as dimensões do digital. Essa compartimentalização não nos permite enxergar a complexidade do sistema.
Nilson Brandão: Como está a situação da conectividade no Brasil e qual seu impacto na soberania digital?Luca Belli: A chamada conectividade significativa é necessária para que a IA desenvolvida no Brasil seja acessível, ou seja, os usuários brasileiros precisam ser conectados à toda Internet, e não ser conectado somente ao WhatsApp, Instagram e Facebook, como 78% da população brasileira. O Cetic.br fez um relatório sobre conectividade significativa no Brasil passado. Para se afirmar que você está conectado à internet, segundo a União Internacional das Telecomunicações, você precisa ter acessado a internet uma vez no último mês, nada mais. Os resultados são bastante assustadores: 78% da população no Brasil não tem conectividade significativa. Somente as camadas mais ricas do país têm acesso à conectividade significativa.
Nilson Brandão: Existem exemplos internacionais que o Brasil poderia seguir para melhorar sua soberania digital?
Luca Belli: No livro que lançamos sobre a soberania digital no BRICS, abordamos o exemplo da Índia. Em 2016, a Índia proibiu esses modelos de conectividade discriminatória chamados de zero rating, ou seja, os aplicativos patrocinados. É interessante que, no mesmo ano, a Índia e o Brasil adotaram uma regulação para a proteção da neutralidade da rede. Na Índia, foi proibida a possibilidade de patrocínio de aplicativo, enquanto no Brasil o decreto 8771/2016 foi interpretado no sentido de permitir o patrocínio de aplicativos. Na Índia, nos últimos três anos, houve uma explosão de inovação. Não somente os preços da conectividade caíram 95%, mas tem também um enorme leque de empresas e gigantes de tecnologia indiana que se desenvolveram e cresceram enormemente nos últimos 10 anos.
Nilson Brandão: Soberania digital significa necessariamente isolamento tecnológico?
Luca Belli: Claramente não. A ideia de soberania digital não é se tornar uma autarquia digital. A constituição russa como maneira como a soberania digital é implementada na Rússia, por exemplo, é muito mais parecida com uma autarquia digital. Mas não é necessariamente esse o tipo de constituição que precisamos promover. O que chamamos de boa soberania digital é o uso da tecnologia para o empoderamento das pessoas e para o crescimento das empresas locais. A ideia é justamente reduzir a dependência, ampliando o mais possível as potenciais escolhas que você tiver.
Nilson Brandão: Como surgiu o conceito de soberania em IA e qual sua relação com a soberania digital?
Luca Belli : Digamos que a soberania digital é o gênero e a soberania da IA é a espécie dentro do gênero. A soberania digital é a autonomia, a autodeterminação e o controle sobre todo tipo de tecnologias digitais, enquanto a soberania de IA diz respeito a sistemas de IA mais especificamente. A ideia de se especializar na soberania de IA é algo que surgiu mais nos últimos dois anos e meio. Eu apresentei um paper sobre soberania em IA em maio de 2023. Naquela época, simplesmente não havia pesquisa sobre esse assunto. Já havia muita pesquisa sobre soberania digital, mas ninguém ainda tinha pensado em chamar um paper de ‘soberania em IA’.
Nilson Brandão: O que podemos aprender com os outros países do BRICS sobre políticas digitais?
Luca Belli : É fascinante, porque cada um destes países tem desafios muito parecidos, mas estruturas políticas, tecnológicas e econômicas extremamente diferentes. O caso da China é exemplar: em 30 anos eles conseguiram passar de um país subdesenvolvido a um dos países mais desenvolvidos tecnologicamente no mundo, justamente porque adotaram uma abordagem sistêmica. Eles estudam muito o fenômeno que querem regular e dominar, entendem quais são os elementos e criam por etapas não somente regulação, mas também política industrial. A Índia também conseguiu fazer uma enorme transformação digital graças a essa análise sistêmica.
Nilson Brandão: Qual é o papel dos BRICS na governança digital global?
Luca Belli: O BRICS é um produto essencialmente do trabalho seja diplomático, seja intelectual, dos países do bloco. E este trabalho pode ter resultados concretos com impacto global, como a recente elaboração e adoção da Convenção da ONU contra Cibercrime, um produto da liderança dos países do BRICS. É uma evidência muito contundente que não é mais possível ignorar ou considerar o bloco como um fenômeno marginal. Não existe nesse momento outro grupo de governança global que tenha essa capacidade que o BRICS tem hoje. O G7 e o G20 estão totalmente paralisados neste momento pelos Estados Unidos. Não existe outro mecanismo de governança global de poucos países que possam dialogar entre eles e que depois tenham esferas de influência regional.
Nilson Brandão: O Pix é um exemplo de soberania digital brasileira?
Luca Belli: O Pix é um bom exemplo de soberania digital porque antes dele, éramos totalmente dependentes de Visa e Mastercard para processamento de pagamentos. Agora não. Visa e Mastercard não foram proibidas, mas foi criada uma alternativa brasileira. Porém, a infraestrutura de cloud e hardware em que roda o Pix é toda feita pela IBM e pela Oracle. É até absurdo, de certa forma, porque o Pix não é uma inteligência artificial de última geração que precisa da infraestrutura da Oracle e da IBM. Poderia ser feito pelo Serpro ou Dataprev, poderia ser feito como um cloud nacional, mas por razões essencialmente políticas não foi escolhida essa opção.
Nilson Brandão: Como os países do BRICS podem cooperar para fortalecer sua soberania digital?
Luca Belli: Existem três formas que podem ser cogitadas em termos de cooperação. Primeiro, cooperação em termos de políticas comuns e regulação comum, identificando a chamada interoperabilidade legislativa. Segundo, iniciativas de pesquisa e desenvolvimento comuns, ou seja, projetos multilaterais de cooperação científica. Cooperação em IA no agronegócio ou no âmbito médico poderia ser extremamente proveitosa. Terceiro, o uso e compartilhamento daquelas tecnologias em open source, em código aberto, que já existem.
Nilson Brandão: O que o Brasil precisa fazer para avançar em soberania em IA?
Luca Belli: A primeira mensagem é não considerar a inteligência artificial como algo abstrato nem como algo muito específico, apenas como o Chat GPT. Precisamos considerar a inteligência artificial como um sistema, olhar seus componentes. Inteligência artificial representa muitos dados processados por muito software em muito hardware, e você precisa de eletricidade e cibersegurança para que tudo funcione bem. Se você olhar os elementos que compõem o sistema, você consegue entender como ele funciona, até reproduzir esse funcionamento no seu próprio país e regular de maneira eficiente. Minha mensagem principal é: pare, entenda a complexidade do sistema e adote políticas industriais e regulações mais favoráveis para dominar a tecnologia e não ser dominado por ela.
Nilson Brandão: Qual é o papel do acesso ao conhecimento na construção da soberania digital?
Luca Belli: Política industrial é simplesmente um estímulo à indústria. É criar esquemas de apoio à pesquisa e desenvolvimento, criar uma taxação favorável para quem está desenvolvendo uma tecnologia estratégica. Não adianta simplesmente adotar leis como a LGPD e ninguém respeitar. Você precisa criar um incentivo para as empresas desenvolverem tecnologia que facilite o cumprimento da lei. Não estamos enxergando, como deveríamos, a regulação como facilitação, mas enxergamos a regulação simplesmente como repressão e sanção. Deveríamos fazer leis sancionando abusos e implementando essas sanções de maneira eficiente, sim, e por outro lado, fazer como uma política industrial, criar incentivos fiscais, apoiando pesquisas e desenvolvimento de tecnologias que implementam essas leis.
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