Entrevista com André Rafael Costa e Silva, por João Ricardo Penteado

Esta entrevista foi originalmente realizada em português em outubro de 2023.

André Rafael Costa e Silva possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais e é mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desde 2011, integra a carreira federal de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Atualmente, é o coordenador de Políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação Digital do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação.

João Ricardo: Quais têm sido as iniciativas do MCTI na área de IA nos últimos anos?

André: A principal iniciativa é a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), que foi instituída por meio da Portaria MCTI nº 4.617, de 6 de abril de 2021. A EBIA possui nove eixos temáticos, para os quais foram estabelecidas ações estratégicas visando nortear as ações do Estado Brasileiro na área de inteligência artificial.

Paralelamente, em parceria com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e o CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), foi lançada uma chamada pública que selecionou 10 Centros de Pesquisa Aplicada em Inteligência Artificial (CPAs em IA). Para esse programa, que já está em andamento, estão previstos R$80 milhões em recursos, a serem desembolsados ao longo de 10 anos. O programa ainda determina que as empresas parceiras desses centros também aportem um recurso da mesma magnitude.

Em 2020, também foi lançado o programa IA² MCTI, fruto de uma parceria entre o MCTI e a Softex (Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro), que movimentou R$40 milhões. O ministério também realizou repasses para os Institutos de Ciência e Tecnologia credenciados como “unidades Embrapii” (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial). Várias dessas unidades desenvolvem projetos que envolvem inteligência artificial. Estima-se que os projetos relativos à IA nesse programa em específico tenham movimentado R$300 milhões em dez anos.

Outra iniciativa atual são os editais do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) direcionados para estudantes que estejam elaborando TCCs em inteligência artificial.  É importante citar ainda os projetos de PDI (pesquisa, desenvolvimento e inovação) gerados a partir da lei de TICs (Lei nº 8.248/91). Nessa lei, todo ano a empresa beneficiária tem que comprovar um investimento em PDI para poder fazer jus aos benefícios fiscais. Como a IA é uma temática que está na crista da onda, muitos projetos são desenvolvidos nessa área.

Outra iniciativa de destaque é o edital de Soluções de IA para o Poder Público, que é fruto de uma parceria do MCTI com a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), a ENAP (Escola Nacional de Administração Pública) e o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. Nessa iniciativa, os órgãos públicos federais submetem um desafio de sua competência para a qual poderia haver uma aplicação de IA. Num segundo momento, é feita uma seleção dos desafios apresentados para serem descritos em um edital voltado para startups interessadas em desenvolver a aplicação. O primeiro edital já foi lançado e as startups já foram contratadas. Há um segundo edital cujo processo de seleção das startups está em curso e um terceiro edital será publicado em breve. Vale ainda dizer que a mesma Finep também já publicou um edital de R$80 milhões voltado para startups desenvolverem aplicações de IA nos quatro ambientes priorizados pela EBIA. 

Também temos projetos de residência tecnológica no âmbito do programa “MCTI Futuro” que já somam R$200 milhões, sendo que vários deles estão relacionados à IA. E há ainda um edital do CNPq orçado em R$12 milhões para pesquisas de mestrado e doutorado nas áreas de computação quântica, fotônica integrada e inteligência artificial.

Além de tudo isso, estamos articulando junto com o CGI.br e o CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos) a constituição do Observatório Brasileiro de Inteligência Artificial. Será a partir dele que estipularemos indicadores, políticas e outras informações relevantes para o monitoramento do desenvolvimento de IA e também para a construção de políticas públicas do setor.

Por fim, convém mencionar que estamos participando das discussões dos projetos de lei de regulamentação da IA no Congresso.

 

João Ricardo: Quais têm sido os principais desafios que o MCTI tem enfrentado na área da IA?

André: No mundo todo, existe muita incerteza em torno de quais serão os impactos efetivos da IA na sociedade e isso não é diferente no Brasil. Essa questão é importante pois influencia diretamente o debate em torno da regulação. Nesse sentido, há atores que defendem uma regulação mais abrangente, que busque englobar eventuais riscos, há os que defendem uma regulação baseada em direitos, em termos de oferecer um conjunto de direitos ao usuário de serviços que envolvem inteligência artificial, e há também os que defendem uma regulação baseada em princípios. E ainda aqueles atores que creem que a regulação pode inibir a inovação na inteligência artificial.

Então um dos principais desafios do MCTI, no momento, é contribuir com subsídios junto à Presidência da República e ao Congresso Brasileiro para que estes possam aprovar leis que possibilitem a melhor regulação possível na área da IA.

Outro grande desafio que temos no ministério diz respeito às nossas ações para promover um ecossistema de ICTs e empresas que, de fato, consiga avançar nas cadeias de desenvolvimento tecnológico da IA. Nesse ponto, nós temos alguma dificuldade de mobilização de recursos em face do que outros países têm conseguido mobilizar. Nós temos, por exemplo, uma capacidade limitada de infraestrutura de processamento, o que dificulta o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem de IA. Diversos atores nacionais que atuam na área enxergam nisso um dos nossos principais pontos críticos.

O número de pessoas capazes para trabalhar na área de IA também constitui outra questão importante. Temos um desafio na formação e na retenção de talentos nos centros de pesquisa e empresas brasileiras. Muitos estão indo trabalhar fora ou passaram a trabalhar remotamente para empresas estrangeiras. Temos percebido isso como algo cada vez mais crítico e para o qual nós temos que dar atenção. 

Há também um fator estrutural mais básico, no sentido que temos poucos alunos formados com interesse nas disciplinas de STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics). Trata-se, entretanto, de um problema que não se restringe apenas à alçada do MCTI, mas que deve envolver também outros ministérios, bem como Estados e municípios. De qualquer forma, temos discutido amplamente o desenvolvimento de políticas efetivas que possam aumentar a  quantidade de estudantes e profissionais voltados para as áreas mais críticas da IA.

A IA aplicada à Segurança Pública também é um tema complexo. Afinal, até que ponto devemos estimular o armazenamento e emprego dos dados de uso e biométricos das pessoas? O problema é que essa prática pode representar um risco aos direitos dos cidadãos. Há um conjunto de desafios embutidos nessa questão e isso se dá sobretudo pelo fato de a IA possuir uma grande transversalidade em sua aplicação. Lidar com esses desafios no âmbito da Segurança Pública exige uma coordenação grande entre órgãos do governo, o que enfatiza ainda mais a necessidade de aprimorarmos a governança da EBIA.

Inclusive, a questão orçamentária para a implementação das ações previstas na EBIA também representa outro desafio relevante. Quando nossa estratégia foi lançada, bem na época da pandemia, havia um entendimento do Governo Federal de que a área de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) não deveria ser uma prioridade orçamentária. O FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) estava contingenciado, dificultando a movimentação de recursos para a execução das estratégias. Recentemente, houve o descontingenciamento do fundo e a indicação de que a IA deve ser uma tecnologia priorizada. Todavia, a própria ministra Luciana Santos tem destacado a necessidade de buscarmos formas de aumentar e alavancar os recursos de CT&I, tendo em vista que o próprio fundo não é suficiente para todas as necessidades do Brasil nessa área.

A fim de oferecer um exemplo ilustrativo da necessidade de política pública em IA, peguemos o desenvolvimento de soluções para a Saúde. Para obtermos avanços nessa área, é necessário poder de processamento computacional, equipes de programadores especializados, além de acesso a base de dados específicas cujo acesso nem sempre é público. Tudo isso requer investimentos volumosos e estratégias de regulação.

É até possível prover bases de dados públicas a partir de dados como do SUS, o que de certa forma representa uma oportunidade. Mas fazer isso depende de uma série de articulações com outros órgãos públicos, bem como garantir que a legislação de proteção de dados seja respeitada.

João Ricardo: Na sua opinião, quais são as vantagens e desvantagens do Brasil na área de IA?

André: O Brasil tem que aproveitar as suas capacidades na área da saúde, da agricultura, da indústria, do governo federal e das cidades, que são os ambientes prioritários indicados na EBIA, como vetores de mobilização para o desenvolvimento da IA de forma geral.

Precisamos também criar condições para que o setor privado assuma maior risco e invista mais em IA. Nesse sentido, a reforma tributária e a redução dos juros são essenciais para ampliar o apetite dos investidores.

Afora alguns nichos, por exemplo, no setor bancário e no setor do petróleo e aqui vale falar que a Petrobras tem feito investimentos vultosos em IA , nós ainda não temos empresas de TIC (Tecnologia de Informação e Comunicação) relevantes para competir com os players globais em termos de oferta de produtos e soluções.  Dessa forma, ainda somos essencialmente usuários de tecnologias desenvolvidas externamente, o que implica em riscos para nossa soberania e para nosso desenvolvimento.

Inclusive, nós temos dificuldades de ter data centers em solo brasileiro, o que faz com que boa parte de nossos dados se situem em data centers estrangeiros. Isso, aliás, é outra questão importante.

Agora com os CPAs, esperamos poder contar com um maior número de especialistas em IA de alto nível. Isso, aliás, reflete o fato de que temos uma base científica considerável, mas deixamos a desejar na parte empresarial, mesmo que seja crescente o número de empresas nacionais usando soluções em IA, e mesmo de startups voltadas para o desenvolvimento de soluções em IA. Mas em comparação com outros países, nossa debilidade da capacidade empresarial ainda é visível.