
Como os EUA têm usado os chips para estrangular o desenvolvimento da IA na China
Por João Ricardo Penteado
Em 2017, a China lançou um dos primeiros planos nacionais de desenvolvimento de inteligência artificial (IA) do mundo (Creemers et al., 2017). O documento trazia uma ambição categórica: em 2030, o país deveria ser o líder global em inovação nessa possível nova tecnologia de uso geral [1].
Ao menos por ora, tal objetivo segue distante. Os Estados Unidos são os líderes incontestáveis nessa disputa por hegemonia, graças, sobretudo, à vantagem estratégica que possui no ramo dos chips de processamento, um artefato fundamental para o desenvolvimento de aplicações de IA.
Para compreendermos o significado dessa vantagem, lembremos que o desenvolvimento de uma aplicação de inteligência artificial [2] depende de três elementos críticos: 1) o algoritmo que gerará o “modelo” [3] a partir do qual a aplicação funcionará; 2) a base de dados com a qual o algoritmo será treinado; e 3) o poder computacional, que determinará a velocidade dos cálculos do treinamento do algoritmo (Scharre, 2023).
“Poder computacional”, basicamente, tem a ver com os chips de processamento dos computadores usados para desenvolver uma aplicação de IA. Atualmente, os chips mais avançados desse gênero são os chamados GPUs (Graphics Processing Units), cuja principal desenvolvedora é a Nvidia, detentora de 90% desse mercado em nível mundial (Zuhair, 2024). Outras empresas da vanguarda do setor são Intel e AMD [4]. Todas estadunidenses.
Fabricar GPUs envolve técnicas extremamente complexas e de difícil reprodução. Essa condição faz com que o conhecimento tácito dos profissionais envolvidos nos projetos – um conhecimento sempre difícil de codificar e de transmitir – tenha um peso destoante em tal processo (Naughton, 2023). Dessa forma, por mais que o governo chinês dedique quantias exorbitantes para acelerar o desenvolvimento tecnológico de chips de IA (Konaev & Luong, 2023), a convergência e, eventual, ultrapassagem em relação aos níveis tecnológicos detidos pelos EUA está longe de ser simples – fato que praticamente inviabiliza a via do “salto tecnológico” que a China logrou realizar em outros domínios nas últimas décadas [5].
Cientes disso, os EUA têm relegado a filosofia do livre mercado a segundo plano e imposto barreiras comerciais a fim de estrangular o ecossistema chinês de inteligência artificial. Esse movimento tem se dado com a proibição da venda de GPUs de última geração a empresas chinesas, não sem as devidas contradições que restrições como essas implicam.
A estratégia de Washington teve início em 26 de agosto de 2022. Nessa data, a Nvidia informou oficialmente a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA que havia sido proibida pelo governo de vender à China e à Rússia [6] chips dos modelos A100 e H100 (United States Securities and Exchange Comission, 2022), utilizados amplamente em aplicações de IA baseadas em Large Language Models, como o ChatGPT. Na mesma semana, a AMD anunciou que seu chip MI250 também havia sido alvo da restrição (AMD Says, 2022). As notícias foram seguidas de quedas significativas nos valores das ações de ambas as empresas.
Menos de dois meses depois, em 7 de outubro de 2022, o Departamento do Comércio dos EUA oficializou as restrições para toda a indústria nacional de semicondutores, banindo o fornecimento de GPUs de última geração contendo tecnologia estadunidense (na prática, todos os GPUs existentes no mundo) a qualquer empresa ou indivíduo chinês. Segundo o órgão, a medida visava “restringir a capacidade da República Popular da China de adquirir e fabricar certos chips de última geração usados em aplicações militares” uma vez que poderiam ser empregados, entre outras coisas, para “produzir sistemas militares avançados, incluindo armas de destruição em massa” e para “cometer abusos de direitos humanos” (Bureau of Industry and Security, 2022, tradução nossa).
No ano seguinte, as restrições foram atualizadas. Em outubro de 2023, a Nvidia informou que os chips H800 e A800, tidos como modelos menos potentes de seus GPUs mais avançados, também haviam sido proibidos de ser vendidos à China (Leswing, 2023). Além disso, a restrição foi estendida a mais de 40 outros países sob a justificativa de que estes poderiam ser usados como intermediários para que Pequim driblasse as sanções (Alper, Freifield & Nellis, 2023). Já em março de 2024, a AMD anunciou que a mesma proibição abrangeu seu chip MI309, que havia sido projetado especificamente para atender ao mercado chinês (Hawkins & Lee, 2024).
Nem o mercado de data centers aparenta que ficará de fora do cerco comercial. Em janeiro de 2024, a Casa Branca anunciou que todas as empresas do setor – como Amazon, Microsoft e Google, proprietárias da AWS, Azure e Google Cloud, respectivamente – deveriam identificar os clientes estrangeiros que fazem uso de seus serviços. Com isso, o governo estadunidense poderia barrar firmas chinesas de IA que busquem acessar poder computacional de última geração provido por essas plataformas. Ocorre que medidas como essa podem promover a migração de clientes a prestadoras dos mesmos serviços de outros países, algo inclusive alardeado pelas empresas em questão (Edgerton, Hawkins & Rozen, 2024). Se esse argumento terá poder dissuasório sobre as autoridades, não se sabe, mas, ao menos até maio de 2024, nenhuma restrição oficial havia sido imposta junto a empresas estadunidenses de data centers.
Convém ainda mencionar uma última sanção que possui a singularidade de ter se dado fora da jurisdição dos EUA. No caso, quem se viu afetada pela política de Washington foi a holandesa ASML, principal fabricante mundial de maquinário usado na produção de GPUs de última geração. Também em janeiro de 2024, a empresa informou que cessaria suas exportações para a China depois de ter sua licença de exportação revogada pelo governo da Holanda, que, conforme relatou a própria ASML, agiu sob pressão da Casa Branca (Simpson, 2024).
Se, por um lado, a estratégia dos EUA de estrangular o desenvolvimento da IA na China se apresenta como mais uma engrenagem do processo de desacoplamento dos mercados dos dois países (Al-Rikabi & Murray, 2023), por outro ela tem demonstrado ser bem-sucedida em preservar a hegemonia estadunidense no âmbito da inteligência artificial. Tal análise é corroborada pelos números: segundo o relatório AI Index de 2024, os EUA seguem líderes mundiais no volume de investimentos privados no mercado de IA [7] e na quantidade de novas empresas especializadas [8], com cifras muito superiores às chinesas (Universidade de Stanford, 2024).
Ainda que a China demonstre forte competividade nessa indústria – como indica o fato de serem líderes no número de patentes em IA em 2023 [9] –, a leitura do quadro geral é a de que a ambição de Pequim de ser a líder mundial em inteligência artificial já em 2030 dificilmente se concretizará. E isso muito em razão do fator dos chips, que os EUA têm sabido usar de maneira bastante hábil, e assaz pragmática, a seu favor.
Notas
[1] Para uma discussão sobre o conceito de “tecnologia de uso geral” (general purpose technologies), ver Bresnahan e Trajtenberg (1992) e Albuquerque (2017). Para uma discussão sobre a IA como tecnologia de uso geral, ver Brynjolfsson & McAfee (2014).
[2] Falamos aqui da modalidade “aprendizado de máquina”. Há outras modalidades que prescindem do uso de dados para funcionar, caso do “sistema especialista”, que se baseia em regras.
[3] Cabe recordar que “modelo” e “algoritmo” são dois elementos distintos. Um modelo, no vocabulário da ciência de dados, é o programa que é gerado depois que um algoritmo é treinado junto a uma base de dados.
[4] Vale lembrar que essas empresas “apenas” desenham os chips. Estes, posteriormente, são fabricados em Taiwan pela empresa TSMC, que, por sua vez, se utiliza de maquinário produzido pela ASML, da Holanda. A TSMC é responsável por 61,2% do mercado mundial de semicondutores (Alsop, 2024).
[5] Outro termo usado para “salto tecnológico” é leapfrogging. Para uma discussão sobre o conceito e o sucesso chinês em adotar essa via, ver Prates (2022).
[6] No caso da Rússia, a restrição já fazia parte do conjunto de sanções que a OTAN impôs ao país como represália à guerra na Ucrânia.
[7] Em 2023, os investimentos privados na indústria de IA dos EUA atingiram 67,2 bilhões de dólares, quase nove vezes mais que os da China (Universidade de Stanford, 2024).
[8] Em 2023, os EUA registraram 897 novas empresas de IA em face de 122 na China (Universidade de Stanford, 2024).
[9] Em 2022, 61,1% das patentes em IA tiveram origem na China, enquanto 20,9% delas tiveram origem nos EUA (Universidade de Stanford, 2024).
Referências
Albuquerque, E. M. (2017). Nathan Rosenberg: historiador das revoluções tecnológicas e de suas interpretações econômicas.Revista Brasileira de Inovação, 16, 9- 43. https://doi.org/10.20396/rbi.v16i1.8649138
Alper, A., Freifield, K. & Nellis, S. (2023, October 17). Biden cuts China off from more Nvidia chips, expands curbs to other countries.Reuters. https://www.reuters.com/technology/biden-cut-china-off-more-nvidia-chips-expand-curbs-more-countries-2023-10-17/
Alsop, T. (2024, March 18). Semiconductor foundries revenue share worldwide from 2019 to 2023, by quarter. Statista. https://www.statista.com/statistics/867223/worldwide-semiconductor-foundries-by-market-share/
Al-Rikabi, R. & Murray, B. (2023, June 22). Why prospect of US-China ‘decoupling’ is getting serious.Bloomberg.https://www.bloomberg.com/news/articles/2023-06-22/what-is-us-china-decoupling-and-how-is-it-happening?leadSource=uverify%20wall
AMD says U.S. told it to stop shipping top AI chip to China (2022 August 31). Reuters. https://www.reuters.com/technology/amd-says-us-told-it-stop-shipping-top-ai-chip-china-2022-08-31/
Bresnahan, T. & Trajtenberg, M. (1995). General purpose technologies: ‘engines of growth’? Journal of Econometrics, 65(1), 83-108. https://doi.org/10.1016/0304-4076(94)01598-T
Brynjolfsson, E. & McAfee, A (2014). The second machine age: work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies. W. W. Norton & Company.
Bureau of Industry and Security. (2022, October 7). Commerce implements new export controls on advanced computing and semiconductor manufacturing items to the People’s Republic of China (PRC). https://www.bis.doc.gov/index.php/documents/about-bis/newsroom/press-releases/3158-2022-10-07-bis-press-release-advanced-computing-and-semiconductor-manufacturing-controls-final/file
Creemers, R.. Kania, E., Triolo, P. & Webster G. (2017 August 1). Full translation: China’s ‘new generation artificial intelligence development plan’ (2017). https://digichina.stanford.edu/work/full-translation-chinas-new-generation-artificial-intelligence-development-plan-2017/
Edgerton, A., Hawkins, M. & Rozen, C. (2024, January 26). US wants cloud firms to report foreign users building AI. Bloomberg. https://www.bloomberg.com/news/articles/2024-01-26/raimondo-floats-cloud-reporting-rules-on-non-us-ai-developers
Hawkins, M. & Lee, J. L. (2024, March 4). AMD hist US roadblock in selling AI chip tailored for China. Bloomberg. https://www.bloomberg.com/news/articles/2024-03-05/amd-hits-us-roadblock-in-selling-ai-chip-tailored-for-china
Konaev, M. & Luong, N. (2023, August 10). In & out of China: financial support for AI development. Center for Security and Emerging Technology. https://cset.georgetown.edu/article/in-out-of-china-financial-support-for-ai-development/
Leswing, K. (2023, October 17). U.S. curbs export of more AI chips, including Nvidia H800, to China. CNBC.https://www.cnbc.com/2023/10/17/us-bans-export-of-more-ai-chips-including-nvidia-h800-to-china.html
Naughton, J. (2023, October 21). The advanced silicon chips on which the future depends are all made in Taiwan – here’s why that matters. The Guardian. https://www.theguardian.com/commentisfree/2023/oct/21/silicon-chips-taiwan-semiconductor-manufacturing-company-tsmc
Prates, B. P. (2022). China na revolução digital: catch-up, leapfrogging e planejamento estatal. In. Anais do VI Encontro Nacional de Economia Industrial e Inovação (ENEI): “Indústria e pesquisa para Inovação: novos desafios ao desenvolvimento sustentável” (pp. 807-828). Blucher. DOI 10.5151/vi-enei-851
Scharre, P. (2023). Four battlegrounds: power in the age of artificial intelligence. W.W. Norton & Company.
Simpson, J. (2024, January 2). ASML halts hi-tech chip-making exports to China reportedly after US request. The Guardian. https://www.theguardian.com/technology/2024/jan/02/asml-halts-hi-tech-chip-making-exports-to-china-reportedly-after-us-request
United States Securities and Exchange Commission. (2022, August 26). Current report pursuant to section 13 or 15(d) of the securities exchange act of 1934 (No. 0-23985). https://www.sec.gov/ix?doc=/Archives/edgar/data/0001045810/000104581022000146/nvda-20220826.htm
Universidade de Stanford (2024). Artificial Intelligence Index Report 2024. https://aiindex.stanford.edu/report/
Zuhair, M. (2024, January 26). NVIDIA’s global AI chip market share reaches a whopping 90%, analysts says competitors years from catching up. Wccftech. https://wccftech.com/nvidia-global-ai-chip-market-share-whopping-90-percent-competitors-years-catching/