Entrevista com Atahualpa Blanchet Por Fernando Grisi

Atahualpa Blanchet  é pesquisador no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP) e do Grupo de Pesquisa Transformação Digital e Sociedade da PUC SP. Especialista em Tecnologias Emergentes do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul e consultor em Inteligência Artificial para o Escritório da UNESCO para América Latina e Caribe.

Essa entrevista foi realizada originalmente em português no dia 15 de março de 2024

Versão original

 Fernando Grisi: Qual a importância da Declaração de Princípios de Direitos Humanos no âmbito da Inteligência Artificial para os países do Mercosul?

 Atahualpa Blanche: A Declaração de Princípios de Direitos Humanos no âmbito da Inteligência Artificial é um marco para a abordagem do tema desde a perspectiva regional e desde o Sul Global. É o primeiro documento dessa natureza aprovado pela institucionalidade do Mercosul, nesse caso, desenvolvido no âmbito da Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos (RAADH) do bloco. O documento também inova ao enfatizar temas como racismo algorítmico e o respeito às línguas, culturas e saberes das comunidades e povos tradicionais. A Declaração também reforça o reconhecimento de princípios éticos para a IA como transparência algorítmica, explicabilidade e não discriminação abordando temas centrais como o incentivo a políticas públicas que vão desde o investimento em conectividade ao direito à internet, passando por aspectos como a educação digital e a aplicação dos sistemas de gestão por IA no mundo do trabalho, assegurando o direito dos trabalhadores à negociação coletiva dos algoritmos.

Fernando Grisi: Quais os impactos do uso da Inteligência Artificial (IA) para nós, humanos?

Atahualpa Blanche: Os impactos do uso da IA para a humanidade se dará em todas as dimensões da vida social e na interação com a informação e as coisas. Nesse sentido, o advento dessa tecnologia tem múltiplas potencialidades que poderão representar avanços significativos em campos como saúde, educação, seguridade alimentar, mobilidade urbana, comunicação e produção de conhecimento científico, entre outros. Ao mesmo tempo, como toda ferramenta criada pelos humanos, a IA e seus usos e impactos possuem riscos que devem ser devidamente mensurados e minimizados. Nesse sentido, variáveis políticas e econômicas permeiam os debates e avanços no âmbito regulatório e essas dinâmicas influenciam não apenas os ambientes nacionais, mas também os organismos internacionais que formulam instrumentos como recomendações, resoluções e declarações aplicados multilateralmente.

 Fernando Grisi: A declaração tem 17 princípios, na sua opinião, eles são suficientes?

Atahualpa Blanche:Ao longo do desenvolvimento do documento, por meio do debate junto às delegações nacionais da RAADH, o número de princípios foi mudando resultando em 17. Durante o processo de elaboração, a Declaração chegou a ter mais de 20 princípios que foram condensados sem perder o conteúdo sugerido pelos representantes na versão final do documento. A redação de cada princípio vem acompanhada de uma parte descritiva que especifica e aprofunda o escopo de abordagens relacionadas a cada um dos 17 pontos destacados. Além dos princípios elencados na parte resolutiva do documento, a sua introdução (considerandos) faz menção a uma série de documentos como, por exemplo, a Recomendação da UNESCO de Princípios éticos para a IA reforçando a sua aplicação no âmbito regional o que torna o documento muito mais abrangente para a sua aplicação do que na aplicação dos 17 princípios priorizados. Para a hermenêutica voltada à aplicação de um instrumento internacional, independentemente da sua natureza ser ou não vinculante, esse é um aspecto muito importante para assegurar a eficácia da Declaração.

Fernando Grisi: Comente sobre a Governança e IA (princípio 17)

Atahualpa Blanche: A Governança para a Inteligência Artificial é um tema que desafiador haja vista a importância de contar com ambiências que atuem de forma participativa, representativa, coordenada e eficaz no tempo e no espaço em face de um fenômeno que transcende fronteiras nacionais e que envolve atores de distintas naturezas institucionais. Organismos Internacionais, governos, empresas, sociedade civil e cidadãos deverão participar ativamente no direcionamento do uso das ferramentas digitais com vistas a realizar o propósito de gerar desenvolvimento humano, social e econômico por meio da tecnologia e não intensificar e agravar situações e dinâmicas tendentes a ampliar quadros de desigualdades históricas e novas situações que apenas maximizem os benefícios de uma minoria em detrimento da maioria das populações.

É com esse propósito que o Mercosul buscará se inserir nos diversos foros que estão em construção, bem como criar seus espaços próprios de diálogo e participação para a formulação de políticas, diretrizes e ações voltadas à governança da IA desde premissas elencadas nos princípios desta Declaração bem como de outros instrumentos relevantes no plano internacional como a já citada Recomendação da UNESCO sobre a Ética na Inteligência Artificial.  Cabe ressaltar que a UNESCO está criando um Conselho Intergovernamental para os países da América Latina e um Business Council que integrará as empresas de tecnologia. E o Mercosul poderá participar desses espaços.

 Fernando Grisi: Como disseminar melhor esse documento?

Atahualpa Blanche: A Declaração foi promulgada em dezembro de 2023. Já no primeiro semestre de 2024, o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH) realizou uma série de ações de disseminação do instrumento, junto ao GT de Comunicação da RAADH, com base em uma estratégia de disseminação do documento. As iniciativas do IPPDH envolvem a realização de um curso sobre Novas Tecnologias e Direitos Humanos voltado para gestores públicos e acadêmicos, bem como de reuniões com atores estratégicos que vão desde os ministros e secretários de Direitos Humanos dos países do MERCOSUL a instituições acadêmicas e representantes de movimentos sociais. É fundamental que a Declaração seja inserida na agenda da região e utilizada como referência para a formulação de políticas públicas em matéria tanto de Direitos Humanos como de Ciência e Tecnologia tendo em vista a sua transversalidade.

 Fernando Grisi: Como engajar pesquisadores a escrever mais sobre esse documento?

Atahualpa Blanche: O engajamento de pesquisadores pode ocorrer por meio de iniciativas como a realização de seminários, oficinas e cursos sobre o assunto tendo como marco a Declaração e seus elementos gerais e específicos. O diálogo com universidades, institutos e grupos de pesquisa poderá potencializar a sua disseminação e aperfeiçoamento dos seus mecanismos de monitoramento e implementação. Na medida em que o instrumento ganhe centralidade na agenda política regional, os pesquisadores tendem a se interessar em desenvolver estudos sobre a sua aplicação e eficácia que poderá contribuir, inclusive para o seu fortalecimento. Há exemplos concretos sobre essa dinâmica como o caso da Declaração Sociolaboral do Mercosul que, atualmente, é um instrumento de referência cuja utilização também é perceptível no âmbito dos poderes judiciários dos países do Bloco. Ao fim e ao cabo, a validade e incidência desse tipo de documento, como uma Declaração emanada pelo Mercosul, depende de elementos que envolvem a produção de conhecimento e, nesse contexto, a participação da academia é fundamental.

Notas

 (1) Disponível em : https://drive.google.com/file/d/1ZeG0FytIngpnhaUDpp3Z3vsQzmDiubJq/view?usp=sharing