
Entrevista com Luiza Gimenez Nonato, por João Ricardo Penteado
Entrevista com Luiza Gimenez Nonato, por João Ricardo Penteado
Esta entrevista foi originalmente realizada por e-mail em português em fevereiro de 2024.
Luiza Gimenez Nonato é graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista e em Direito pelo Mackenzie, e mestre e doutora em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. É advogada e possui experiência na área internacional em organizações públicas e privadas. É autora da tese “Relações de poder na era da inteligência artificial (IA): a competição estratégica entre Estados Unidos e China pela liderança da IA”.
João Ricardo Penteado: Como você resumiria a disputa entre EUA e China no âmbito da inteligência artificial (IA)? E como a questão da indústria dos semicondutores, que vemos bastante na mídia, está relacionada a essa disputa?
Luiza Gimenez Nonato: A disputa entre os EUA e a China no âmbito da IA pode ser resumida como uma das grandes disputas por poder da atualidade, dado o seu alto potencial de afetar a economia e a sociedade em escala global, uma vez que se trata de uma tecnologia de uso geral (1) de impactos comparáveis à da eletricidade. Cabe ressaltar que a disputa política entre EUA e China é multifacetada e a IA é apenas uma delas. No entanto, há um consenso mútuo entre as potências de que a IA moldará o futuro do poder e se tornou o novo foco da competição internacional da atualidade.
No que tange aos semicondutores, trata-se de uma tecnologia denominada “chokepoint” (“chokepoint technologies”), isto é, tecnologias críticas ou estratégicas com impactos na economia, na segurança nacional e até mesmo geopolíticos. Os semicondutores são a espinha dorsal da economia digital e essenciais ao desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, o grau de autossuficiência em semicondutores define o grau de dependência tecnológica. Portanto, essas tecnologias são vistas como “gargalos” (“chokepoints”) e o controle sobre sua disponibilidade (produção e distribuição) pode ser utilizado para influenciar ou mesmo restringir as atividades de outros países ou demais atores, como as grandes empresas.
Na prática, isso tem se traduzido em controles de exportação, sanções e restrições por parte dos EUA às empresas chinesas e investimentos maciços na construção de fábricas de semicondutores em seus respectivos territórios.
João Ricardo Penteado: Em sua tese, você fala sobre elementos de poder na era da IA. Poderia comentar sobre eles?
Luiza Gimenez Nonato: Os elementos que contribuem para a conformação do poder variam conforme a época. Por exemplo, o poder militar foi visto como elemento fundamental de poder durante grande parte da história. Com as transformações econômicas e o crescimento da interdependência, o poder passou a ser exercido de maneira menos coercitiva e menos violenta.
Na era da IA, defendemos que o conceito de poder também passa por transformações, já que a garantia de uma posição competitiva no cenário global se dará por meio do domínio ou pelo menos liderança no desenvolvimento e implementação da IA. Para tanto, os países deverão desenvolver capacidades e recursos, tais como dados, poder computacional, talentos em IA, altos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e definição das normas, regras, princípios e padrões internacionais para a IA.
João Ricardo Penteado: Qual o papel das empresas de tecnologia nessa disputa e como você descreveria a relação que elas possuem com os Estados norte-americano e chinês? Em outras palavras, quem “manda mais”?
Luiza Gimenez Nonato: Historicamente, o Estado sempre foi considerado o principal ator e detentor de poder. No entanto, as empresas multinacionais de tecnologias (“big techs” ou “tech giants”) têm gradualmente ganhado peso e influência em assuntos políticos, econômicos e sociais. Alguns autores consideram que estamos vivendo uma nova forma de capitalismo, que comercializa dados, com capacidade de afetar comportamentos sociais e políticos, como também a segurança nacional, elementos esses que foram por muito tempo exclusivos dos Estados. Portanto, as empresas de tecnologia não poderiam mais ser vistas como elementos secundários, pois há um espaço de agência que os Estados não controlam e não sabem controlar.
Em termos comparativos, é complexo avaliar a relação das empresas com os Estados norte-americano e chinês, uma vez que os modelos são distintos. Nos EUA, por exemplo, prevalece o livre-mercado e as empresas têm muito mais liberdade para atuar. Já na China, há uma forte centralização, na qual o governo exerce influência e participa ativamente na definição das estratégias. Cada modelo tem seus prós e contras, sendo fato que ambos possuem grandes competidores internacionais, com grande atuação em suas respectivas zonas de influência regionais e internacionais.
Por exemplo, o Facebook, da empresa Meta, foi por muitos anos a rede social mais valiosa do mundo. Mas, em 2023, foi desbancado pelo TikTok (Lima, 2023), que é uma empresa chinesa. A competição é acirrada e não há clareza nesse momento de quem esteja em posição de vantagem.
João Ricardo Penteado: Em sua tese, você descreve as instituições que os Estados norte-americano e chinês criaram para conduzir suas políticas de desenvolvimento de IA. Como você caracterizaria cada uma dessas estratégias? Há alguma visivelmente mais eficiente que outra?
Luiza Gimenez Nonato: De um lado, os Estados Unidos advogam por uma abordagem mais descentralizada e baseada em mecanismos de mercado para a governança da IA, o qual pressupõe menor intervenção governamental. De outro lado, a China mantém uma posição tradicionalmente centralizadora para assuntos que considera estratégicos, sendo a IA tratada como prerrogativa fundamentalmente de Estado, com o governo desempenhando um papel não apenas ativo na definição de padrões técnicos e de regulamentação da IA, mas sobretudo de supervisão e controle de outros atores estratégicos para essa atividade.
Na prática, observa-se que na China há diversos órgãos estatais imbuídos da tarefa de tornar o país uma superpotência global em IA até 2030. Nos EUA, por outro lado, há menos estrutura institucional voltada especificamente para o assunto, mas o tema é monitorado intensamente e avanços são feitos por meio de altos investimentos e definição de estratégias nacionais.
De certa forma, essas duas estratégias refletem a postura de quem busca se tornar líder e quem busca manter-se nessa posição. Como dito anteriormente, essa competição está em curso e ainda veremos qual país ou modelo se mostrará mais eficiente em um futuro próximo.
João Ricardo Penteado: Em sua tese, você diz que “a liderança na IA permite que um país influencie a agenda global, estabeleça padrões e regulamentações, e promova seus próprios interesses e valores”. Recentemente, a China lançou a Iniciativa Global para a Governança em IA, que parece visar esse objetivo. Como você vê a disputa entre EUA e China nesse âmbito específico da governança global da IA?
Entendo que há uma atuação muito mais forte da China no tema da governança e da regulação da IA comparativamente aos EUA. A China editou importantes leis sobre algoritmos de recomendação, conteúdos gerados por deepfakes e IA generativa, enquanto nos Estados Unidos foram editadas leis e ordens executivas que definem planos e declarações principiológicas e abrangentes no plano federal, como a AI Bill of Rights, e os estados têm editado cada qual suas próprias leis, como, por exemplo, a Califórnia, que já legislou sobre sistemas autônomos e deepfakes.
No Ocidente, a União Europeia tem buscado ser a pioneira no tema da regulação da IA e isso está muito ligado aos modelos de desenvolvimento e regulatórios de China, Estados Unidos e União Europeia, sendo que nos EUA há uma certa resistência a regulação de tecnologias em estágios de desenvolvimento que possam inibir e afetar a própria inovação.
João Ricardo Penteado: Como você vê o Brasil nessa disputa? Mero espectador e consumidor das tecnologias de IA, em linha com nossa situação de dependência tecnológica de décadas, ou há algo de diferente que possa ser feito?
Luiza Gimenez Nonato: Desde 2018, o Brasil tem identificado a IA como tema de importância, no âmbito da Estratégia Brasileira para a Transformação Digital e, mais especificamente, a partir de 2021, com o lançamento da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), buscando figurar entre os países que definiram estratégias para essa tecnologia – segundo o observatório da OCDE, atualmente há cerca de mil iniciativas em 69 países, incluindo a União Europeia (OCDE, 2024).
No entanto, a EBIA foi bastante criticada, chegando a ser considerada por especialistas como uma compilação de dados e princípios, na medida em que não define propriamente metas, orçamentos ou planejamento. Mais adiante, houve importantes avanços na esfera regulatória com o PL 21/2020, que, após intensa discussão na Comissão de Juristas do Senado Federal, resultou no texto substitutivo do PL 2338/23, que segue em tramitação.
Em resumo, o Brasil traz importantes discussões sobre o tema da regulação da IA, alinhado às boas práticas regulatórias internacionais, mas ainda há pouco sendo feito em termos de investimentos para tornar o país produtor de tecnologia.
Notas
(1) Tidos como os criadores do termo, Bresnahan e Trajtenberg (1995) descrevem essa classe de tecnologia como aquela possuidora de três características essenciais: 1) a possibilidade de emprego em diversos setores da economia; 2) um grande dinamismo que possibilita um elevado número de oportunidades de aprimoramento; e 3) uma intensa complementaridade com outras tecnologias.
Referências
BRESNAHAN, Timothy; TRAJTENBERG, Manuel (1995). General purpose technologies: ‘engines of growth’? Journal of Econometrics, 65(1), 83-108.
LIMA, Monique (2023). TikTok é a marca de rede social mais valiosa do mundo em 2023.https://forbes.com.br/forbes-money/2023/01/tiktok-e-a-marca-de-rede-social-mais-valiosas-do-mundo-em-2023/
OECD. (2024). OECD AI Policy Observatory. https://oecd.ai/en/dashboards/overview