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Rafael Grohmann é professor de Estudos de Mídia na Universidade de Toronto, com foco em estudos críticos de plataformas. É diretor da iniciativa DigiLabor e do Observatório do Cooperativismo de Plataforma, além de co-diretor do Critical Digital Methods Institute. Atua como pesquisador nos projetos Fairwork e Platform Work Inclusion Living Lab. Sua pesquisa aborda temas como trabalho por plataformas, inteligência artificial e trabalho, cooperativismo de plataforma e plataformas de propriedade de trabalhadores.
Nesta entrevista, conduzida pelos pesquisadores associados da iniciativa Understanding Artificial Intelligence, o professor Rafael Grohmann (Universidade de Toronto) fala sobre trajetória acadêmica, cenário internacional de pesquisa, trabalho de plataforma, dataficação, datawork, inteligente artificial, dentre outros temas.
A entrevista foi realizada em duas partes, nos dias 21 de janeiro e 6 de fevereiro.
Link para a entrevista no Youtube : https://youtu.be/_56M2c6oahw
Transcrição por Diego dos Santos M. Gonçalves e Yasmin Aparecida
Revisão por Rafael Grohmann.
Yasmin: Vou fazer primeiro uma pequena apresentação do UAI, e a gente vai se apresentar também, tá bom? Eu não sei se você conhece o UAI, mas o UAI é uma iniciativa do Instituto de Estudos Avançados da USP, que tem como foco fomentar o debate sobre inteligência artificial em uma perspectiva brasileira.
O Understand Artificial Intelligence, o nome curto é UAI, ele conta com sete frentes de atuação. Ética; Estado e Setor Público; Governança; Sociedade e Cultura; Saúde; Regulação; e Educação. O projeto, ele conta com cerca de 46 pesquisadores associados em uma rede multidisciplinar.
Então nós temos professores, engenheiros, filósofos, que buscam produzir conteúdo e divulgar informações sobre inteligência artificial. Eu e o Diego, Píi, a gente faz parte de Sociedade e Cultura. Eu sou assistente acadêmica, eu sou bolsista da iniciativa, então eu cuido de e-mails, procuro notícias, reviso algumas, vejo se está tudo bem com o site.
E o Diego, ele também faz parte da produção de notas críticas e de entrevistas, que ele entrou em contato com você.
Píi: Bom, sou o Píi, Diego, estudante de mestrado aqui no Departamento de Sociologia da USP. E agora, Rafael, se pudesse se apresentar um pouquinho.
Rafael: Claro. Bom, eu sou o Rafael, professor de estudos de mídia com foco em estudos críticos de plataformas na Universidade de Toronto. Atualmente, dirijo o DigiLabour, que é uma iniciativa desde quando eu morava no Brasil, focado em tecnologia e trabalho.
Estou escrevendo meu primeiro livro em inglês. Sobre aprendizados e fracassos de luta. Está sendo uma aventura interessante.
E tenho coordenado pesquisas nas áreas de IA e trabalho, de trabalho com plataformas, especialmente com foco na América Latina, embora agora também esteja na minha primeira pesquisa focada na América do Norte.
Yasmin: A gente dividiu a entrevista em três blocos, um sobre trajetória pessoal e profissional, o outro sobre suas produções em inteligência artificial e plataformas, e o último sobre perspectivas para o futuro, sobre inteligência artificial. A primeira pergunta eu gostaria de perguntar para você, se você poderia compartilhar um pouco da sua trajetória acadêmica? A gente gostaria de saber como você passou pelas ciências sociais, fez seu mestrado e doutorado na ECA, e como essas experiências levaram ao desenvolvimento do DigiLabour na Universidade de Toronto?
Rafael: Ótimo. Uma coisa que eu esqueci de falar na apresentação, é que eu também sou pesquisador associado da Universidade de Oxford.
A primeira coisa, ainda mais agora que estou escrevendo um livro sobre aprendizados e fracassos, é que essas jornadas não são lineares. Elas estão longe de serem lineares. Fiz minha graduação em ciências sociais na Federal de Juiz de Fora, e lá eu sempre quis estudar comunicação, então sempre fui a pessoa que era mais do jornalismo do que das ciências sociais, e comecei a fazer uma série de disciplinas na comunicação também.
E aí fui estagiário da rádio universitária, tinha programa de esporte, de rock, de política, era produtor de audiovisual, então fiz uma série de reportagens audiovisuais também. Então sempre fiquei um pé aqui, um pé ali. Eu fui bolsista de iniciação científica do Jessé Souza, que na época estava por lá.
Então minha primeira paixão acadêmica foi Bourdieu, mas logo fui me descobrindo, acho que isso marca um pouco a minha trajetória, um não-monogâmico epistemológico, digamos assim. Acho que eu tenho a não-monogamia, isso mais recentemente deu esse match, de entender que eu sou não-monogâmico em todas as fases da minha vida, inclusive em termos, “se você gosta do Brasil ou do Canadá?”, ou “se você”, enfim, “do que você gosta de fazer?”, a gente faz muitas coisas. Então minha primeira paixão foi Bourdieu com o Jessé, e deixa eu ver o que eu posso falar publicamente sobre isso, de uma maneira bem polida.
Acabei sendo orientado no TCC por um professor da comunicação, sobre comunicação política, foi sobre eleições de Juiz de Fora, eu estudei no interior de São Paulo, de Guaratinguetá, e eu fui para Juiz de Fora por acaso também, acho que tem uma série de mudanças mesmo, eu não queria nem ir para São Paulo nem para o Rio, porque meus pais são de uma cidade no meio de São Paulo e Rio, e seria fácil eles pegarem um carro e irem me ver, eu não queria, queria um pouco de distância, com 17 anos, e fui para Juiz de Fora um pouco por causa disso. E era uma cidade muito barata, e não sei como eu conseguia viver com uma bolsa de iniciação científica, e hoje em dia você fala, porra… Em outros tempos.
E aí eu fui fazer o TCC na comunicação, e eu falei, bom, nas ciências sociais, ao menos lá em Juiz de Fora, não tinha ninguém que se interessasse pelas coisas que eu estava interessado, e na época eu estava muito interessado nos chamados estudos de audiência, que depois eu acabei chamando de estudos de recepção, que eu acabei considerando uma porta de entrada para mim na academia. E tinham vários estudos sociológicos, antropológicos, indo a casa das pessoas, vendo como elas assistiam novela, iam na casa das famílias, ver como elas discutiam as novelas ou discutiam jornais. Aí eu tentei mestrado na UFRJ e na USP, e na UFRJ eu não passei.
Na UFRJ eu não passei, e era um projeto que eu não fiz até hoje, hoje em dia nem sei se vai ter sentido nesse desenho, mas a ideia é de ver como jovens de diferentes classes do Rio de Janeiro liam o jornal Meia Hora, que é um jornal bem popular e essa coisa. Então isso está na base da minha formação. Quando eu vou para a USP, o projeto inicial de mestrado, com a professora Roseli Figaro, que me acompanha desde 2010, era sobre o jornalista como audiência, quer dizer, como que é o jornalista. E a questão do trabalho, que hoje eu sou mais conhecido, acabou nascendo aí.
Como alguém que é conhecido mais para falar sobre o seu trabalho, como ele é fora do ponto de produção. E no final a gente acaba pensando que tem esse mito do jornalista ser jornalista 24 horas por dia, e no fundo isso acabar trazendo inclusive burnout e tal para a pessoa e isso acabou se confirmando na própria pesquisa. As pessoas falando, eu vou no cinema, mas estou pensando se aquilo dá alguma notícia.
Então a minha primeira pesquisa empírica mesmo no mestrado, acabou que eu estudei jornalistas freelancers e acabei pegando eles tanto como trabalhadores quanto como consumidores. Então as condições de produção, hoje relendo a dissertação, repensando a dissertação tanto tempo depois, eu acho que tem muitos elementos que eu vi ali que depois, com as plataformas, eles se intensificaram. Então essa coisa… Eu falava à época que tinha o freela por opção, que era um cara, geralmente um cara, que passou por Folha de São Paulo, passou pela Veja, na época também eram mais fortes, e ele já tinha uma rede de contatos e resolvia ir para o campo, ia fazer a vida mais sossegada, cuidar dos filhos, e resolvia ser freelancer.
E tinha a maioria, em geral mulheres, que eram freelas por, o que eu chamei à época de freela por… freela por opção e freela por imposição. Porque essa coisa… Acabei de me formar, não tenho emprego, tenho que fazer freela para poder dar conta. Então ali, relendo hoje a dissertação, eu diria que está muito claro que a área de comunicação, ela serviu como um laboratório, paro o foi depois a reforma trabalhista, porque na época tinha essa figura do freela fixo e as redações contratavam a pessoa como freela fixo.
E com todo esse discurso, à época os jornalistas não eram tão críticos das próprias condições de trabalho, o que depois, com a crise, foi se intensificando. E aí, no meu mestrado, eu acabei virando a chave. Virando a chave no sentido disciplinar, porque eu entro no mestrado como sociólogo, venho para a comunicação.
Como o mestrado foi muito focado na prática profissional de jornalista, eu acabei tendo relações com os sindicato dos jornalistas, com as associações, e as pessoas pensavam que eu era jornalista de formação, e eu falava “não sou”, mas comecei a fazer o PAE na USP, em disciplina de jornalismo e tal, e acabei sendo conhecido mais por isso. A parte importante da história é a carreira paralela, que você vai fazendo o mestrado… Eu peguei uma vaga no segundo ano de mestrado, que hoje em dia eu acho que é impossível, não por causa do dinheiro, porque o dinheiro era péssimo, mas eu passei como mestrando numa vaga para professor temporário na Universidade de Taubaté. Então, eu fazia o mestrado durante a semana, eu fazia estágio docência, porque na sexta-feira eu ia dar aula em Taubaté, e foi na época da grávida de Taubaté, inclusive.
Fiquei dois anos lá, como professor substituto, dando aula de sociologia para comunicação, para fisioterapia, para educação física, para sistema de informação. Aí eu terminei o mestrado no meio de 2012, saio de Taubaté também, nessa loucura de ficar viajando para lá e para cá, gastando todo o salário com ônibus, enfim, eu conheço aquela rodoviária do Tietê, em todos os mínimos detalhes. E aí volto para São Paulo mesmo, e entro para ser professor na FMU, que na área da comunicação é chamada de FIAM FAAM, que eu trabalhei lá por seis anos.
Aí, quando eu entro no doutorado, eu já era professor da FIAM, eu fiz o doutorado sem bolsa. Eu vou continuar a história do doutorado, depois eu volto para isso, porque esse paralelo é interessante, um paralelo que depois eles se misturam. O doutorado eu acabei fazendo uma tese bem marxista, embora heterodoxa talvez, mas talvez das minhas produções seja a mais marxista.
Hoje em dia, quando a pessoa me fala que eu sou heterodoxo, eu respondo que não sou nem hétero, nem dóxo. Então, assim, eu nem sei mais como definir. Mas a tese tem uma pegada marxista forte sobre comunicação e classes sociais, que eu via que, era a época daquele discurso da chamada Nova Classe Média, e que tinha também as novelas, “Avenida Brasil”, “Cheia de Charme”, muito marcando esse lugar de uma nova classe C. E aí eu faço uma tese para mostrar que o campo da comunicação só se interessa por classe quando é para pensar aquilo como consumo, como coisa de consumo, e que essa noção de classe foi varrida da pesquisa em comunicação, e eu proponho uma agenda de pesquisa renovada para falar de classe na comunicação.
Entre essa agenda de pesquisa, eu falo lá já de trabalho digital, naquela época o que estava muito em voga era a discussão sobre trabalho gratuito nas redes sociais, se aquilo… Se quando você posta coisas no Instagram, no Facebook, se aquilo é a cultura da participação ou da convergência ou o quanto que haveria ali de extração de valor. E já com uma discussão entre marxistas, especialmente entre o Christian Fuchs e o César Bolaño, se aquilo seria exploração ou não, no sentido marxista. Então ali eu já ponho o pé nisso, e agora retomei esse debate com um capítulo mais recente, e coloco lá a noção de circulação como uma noção importante, tanto como circulação do capital, mas a circulação dos sentidos, das expressões como algo importante, a parte de linguagem, discurso, que é o que a gente vê hoje tudo em disputa, empreendedorismo e tal, e a circulação das lutas também.
Acabam que esses três são pontos que eu também depois carrego para o resto da minha trajetória. Se eu fosse reescrever hoje, eu escreveria de outras maneiras também, eu estava muito focado na noção de classe, em como a academia mobilizava a noção de classe, e paralelamente eu estava na FMU, primeiro como professor horista, também numa outra época em que essas universidades contratavam recém-mestres todo semestre, era muito doido, hoje em dia quase não tem vaga, as vagas sumiram, e eu viro professor de comunicação, jornalismo especialmente, professor horista, cheguei a dar 28 horas de aula, oito turmas, sete turmas, e fazendo doutorado junto, em três campos, Liberdade, Morumbi, essa coisa toda. E chega um momento que a universidade fala que a gente quer fazer um mestrado profissional, e se vocês conseguirem aprovar o mestrado profissional, vocês vão ter salário de professor de universidade pública, e vão deixar de ser horistas.
Eu falei: ótimo. Eu era doutorando nessa época, primeiro ano de doutorado, e eles falaram que o mestrado profissional pode ter 20% de professores não-doutores, porque é o mestrado profissional, e a gente quer você, Rafael, porque você ter uma produção boa. No final descobri que as pessoas ao meu redor não entendiam muito de como escrever uma proposta de mestrado profissional.
Eu fui atrás, estava também no doutorado, atrás dos contatos, e acabou que eu liderei a proposta de escrita desse mestrado, que, por decisão institucional, foi o mestrado profissional em jornalismo. Aí fizemos acontecer esse mestrado em uma linha mais linguagens e jornalismo, a outra em jornalismo e trabalho. Então, a gente continuou o que eu tinha começado no mestrado, de estudar a mudança no mundo do trabalho de jornalista, de estudar a precarização do trabalho de jornalista.
O mestrado foi aprovado e eu virei coordenador. Na verdade, teve uma época em que eu era só coordenador na prática, mas como eu era doutorando, eu não podia coordenar. Eu vivi um tempo em que, ao mesmo tempo que eu coordenava o mestrado, eu estava fazendo doutorado, era uma loucura.
Minha vida foi muito mais corrida do que ela é hoje. Não sei se mais corrida, mas era um outro tipo de correria. Aí eu estudei o jornalismo empreendedor e a emergência também do discurso do empreendedorismo no jornalismo, saindo do freelancer para o empreendedor.
E eu dava uma disciplina na graduação, o nome era ridículo, chamava: atualização e prospecção profissional. O que me deram foi: “você estuda profissional, vou te jogar nela”. A ementa era como fazer uma cerveja de qualidade.
Eu transformei aquilo em quase uma sociologia do trabalho aplicada ao jornalismo. E era uma disciplina meio de fim de curso. Então eram os alunos já bravos com os estágios e discutindo o futuro da cultura, quase uma terapia coletiva.
E é ali que eu começo a pensar que eu não poderia ficar só falando de precarização do trabalho sem pensar em alternativas concretas à profissão. E é ali que nasce, de alguma maneira, essa conjunção da graduação com o mestrado que eu estava coordenando, de estudar as cooperativas. Ainda sem toda essa questão do digital, dos entregadores, que vem depois.
Porque o mestrado profissional tinha que ter uma pegada aplicável, de pesquisa aplicada. E na mesma época, a ESPM tinha lançado o mestrado profissional. E o mestrado profissional da ESPM era muito ligado ao mercado, às grandes normas, e o nosso mestrado era mais crítico.
Então a gente falou, como a gente pode fazer pesquisa aplicada e crítica? E a gente passou a estudar jornalismo comunitário. Tem uma colega, Cláudia Nonato, que estudava jornalismo das periferias. A gente passou a fazer pesquisa com trabalhadores que estavam à margem da produção.
E aí começa a pesquisa com as cooperativas de jornalistas. Num vai e vem… Eu tive duas passagens pela Cásper, uma como professor da graduação, horista e depois como professor do mestrado. Quando eu estava por lá, lá o mestrado era em comunicação. Então eu tinha ampliado um pouco o escopo, para não ficar só com jornalismo. E ali nasce a ideia do DigiLabour.
Quando eu saio de lá, de 2018 para 2019, o DigiLabour nasce depois como newsletter. Ele nasce como newsletter. Depois fui para a Unisinos do Rio Grande do Sul, onde fiquei três anos.
Isso em 2019. Essa é a minha transição para a Unisinos. O DigiLabour nasce… Eu estava desempregado à época, com posdoc na UFRJ, que fiz com o Muniz Sodré.
Foi muito bom também, o posdoc com o Muniz Sodré. Eu fiz um ensaio teórico sobre financeirização, mediatização e dataficação, que é como se fosse a base… Eu costumo falar de uma antessala para o que eu fiz depois. Pensar essas relações entre dados, finanças e o papel da mídia.
E depois eu falo que a plataformização é a nova midiatização. É como o arcabouço teórico do que eu vou trabalhar nos anos seguintes, nessa interrelação. E aí o DigiLabour nasce.
Nesse momento em que eu estava terminando o posdoc, mas estava desempregado e aplicando para concursos. E o fato de eu ter graduação em uma área e doutorado em outra me ferra completamente, porque não é todo concurso que eu posso tentar. A área no Brasil é bem complicada.
Na área da comunicação, você tem que ter graduação em comunicação. Às vezes, a sociologia tem que ter doutorado de sociologia. É um problema.
E aí, qual era o meu ponto à época? Estava fazendo muitos debates internacionais sobre as questões de trabalho e que no Brasil isso não estava chegando. E eu sempre fui muito de compartilhar links com todo mundo. E a minha orientadora, Roseli Fígaro, que orientou meu doutorado, falou para de ficar me mandando essa coisa por WhatsApp.
Ela disse: “Eu não leio por WhatsApp”. Aí eu resolvi fazer uma newsletter para fazer uma curadoria de conteúdo do que saía na imprensa, nas coisas acadêmicas. E ali acabou, meio por acaso, porque ali também era como se fosse o meu guia de estudos, formando a minha agenda de pesquisa que eu sigo até agora, de pensar tanto a plataformização do trabalho como a questão de trabalho e IA, pensar alternativas.
Então, isso que eu comecei a mapear nasceu com a newsletter. E é interessante, estou recebendo uma doutoranda da UFBA aqui como doutorado sanduíche, a Fabiana Benedito. Ela falou para mim que ela assinava a newsletter e falou que a newsletter do DigiLabour foi a minha primeira orientadora, que é ali que eu sabia onde que as coisas iam acontecer.
Acho que a newsletter teve, quando terminou, porque eu vim para Toronto, depois explico isso, tinha 3 mil e tantos assinantes, era em português. Então, acho que cumpriu um papel em sedimentar uma agenda no Brasil. A gente passou a não só fazer essa curadoria do que é interessante ler, quanto eu fazia entrevistas com pesquisadores.
E a ideia dessas entrevistas era tipo: A maior parte das pessoas no Brasil, mesmo os professores de programa, não lêem, falam inglês. Quando chegam esses trabalhos, chegam anos depois, então a gente vai ficar por dentro de uma discussão internacional muito… muito atrás e de que maneira fazer circular o que está rolando de uma maneira mais interessante. Acho que isso cumpriu um papel importante também.
Depois virou um livro da Boitempo, chamou-se Laboratórios do Trabalho Digital. E é muita coincidência, por exemplo, uma das pessoas que entrevistei na época hoje é minha colega de departamento, Alessandro Delfanti. O DigiLabour foi crescendo também ao redor do mundo.
Durante a pandemia, a gente fez várias lives em inglês, como a gente faz até hoje. Às vezes eu encontro com gente fora do Brasil que conhece o DigiLabour, assistindo vídeos em português. Isso acabou chegando a um alcance interessante.
E o meu período na Unisinos foi o período que me amadureceu como pesquisador. Foi o momento que eu passo a ser mais conhecido fora da área da comunicação. Quando eu fui para lá, já vou com essa agenda.
Então, o DigiLabour, assim que entro na Unisinos, em junho de 2019, já vira um laboratório de pesquisa. Então, meus primeiros orientados já vêm com a ideia de estudar o trabalho e tecnologia de alguma maneira. E a Unisinos já era um programa nota 6 na CAPES e virou 7 quando eu saí na área da comunicação.
Então, você tinha um departamento muito forte e uma universidade que tinha… Eu falo que tinha porque logo quando eu saí eles fecharam vários programas de pós-graduação. Então, eu quase saí. No momento certo, se eu não saísse, eu estava desempregado.
Então, tinha colegas muito bons e um ambiente institucional que não tinha vou ser polido também, mas não tinha essa de você não pode fazer isso porque você chegou agora. Era um ambiente que você não herdava briga dos outros. E eu cheguei já lá um pouco mais experiente, as pessoas me conheciam.
E aí, de novo, eu só tinha ido para Porto Alegre uma vez na vida e tentei mudar para lá. Falei, vou mudar porque acho que vai ser interessante. Peguei a maior parte do trabalho antes de pandemia e lá começou tanto forte as pesquisas com motoristas e entregadores.
Começamos o projeto Fairwork na articulação com a Universidade de Oxford e… e com as cooperativas também. Isso já estava antes, já tem um artigo de quando eu estava morando em São Paulo sobre cooperativas, mas ali é o momento que essas coisas se colocam. E durante a pandemia, além de eu ter virado, mesmo, o louco das lives e falo, bom, eu gosto de organizar coisas, hoje em dia aqui em Toronto é uma coisa que realmente é o que me diferencia de outras pessoas.
Os pesquisadores da mesma área deu estar organizando coisas, juntando gente, essa coisa. Durante a pandemia, eu passei a fazer mais parte de pesquisas internacionais, nunca tinha publicado direito em inglês, o meu inglês era péssimo, ainda é ruim, mas melhorou um pouco. E começamos a participar dessas coisas e começamos a publicar coisas em inglês.
E a ideia… Bom, antes de falar de vir para Toronto, na Unisinos, a gente também começa a parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo para construir o Observatório do Cooperativismo de Plataforma, que é um projeto que a gente consulta ano a ano, desde vídeos, documentários. A gente solidifica duas coisas na Unisinos que me acompanham até hoje, além da agenda em si. Tem a agenda em si, os temas que a gente pesquisa, e o modo como a gente pesquisa.
Isso também eu aprendi mais no momento da Unisinos, que é de fazer pesquisas que possam impactar em políticas públicas, essa coisa do policy-oriented research, que possam dialogar com… Fiquei mais próximo de formuladores de políticas e mais próximo também de uma copesquisa com as comunidades, com os trabalhadores, com as atualizações da enquete operária, de coisas que sejam realmente copesquisa. E fui aprendendo, e cada vez mais estou aprendendo, porque gosto de ser desafiado nessas coisas, a como transformar nossas pesquisas em não só artigos acadêmicos, mas em outras formas de… Aqui no Canadá eles chamam de atividades de mobilização de conhecimento. Em outros lugares chamam de engajamento público.
Então a gente já fez. Quando eu estava na Unisinos, a gente fez desenho animado sobre as fazendas de clique. A gente fez 20 vídeos do Observatório do Cooperativismo de Plataforma, fez documentário.
Tem um que não foi publicado, porque a pessoa inglesa não estava pronta, a gente acabou engavetando, mas a gente chegou a fazer uma história em quadrinhos dos entregadores com o roteiro da roteirista do Irmão do Jorel. Agora a gente está fazendo o mesmo, planejando histórias em quadrinhos e vamos lançar essas no meio do ano. Fizemos uma cartilha com o governo brasileiro.
Então a gente começou isso como algo que faz parte da… do cerne do que significa o DigiLabour, da própria newsletter, como um exemplo disso. Aí, governo Bolsonaro, numa universidade que era boa, mas privada, jesuíta, os concursos não estavam aparecendo. Eu falei, não sei até quando vou ficar aqui, é interessante, mas a gente sabe que pode ser demitido a qualquer momento.
E aí começam a aparecer vagas no exterior. Eu nunca tinha concorrido a nenhuma vaga no exterior, nem imaginado estar aqui. Tenho uma especial paixão por Berlim, mas, enfim, Barcelona também.
Mas começam a aparecer vagas no exterior pedindo professores com expertise em Digital Labour ou Platform Studies. E eu falei, pô, posso tentar. E foi toda uma jornada de aprendizado de entender esse universo, porque é outra maneira que se pede concurso, é outra maneira que você aplica.
E logo na minha primeira, foi na Universidade de Amsterdã, eu fui selecionado para a segunda fase, me chamaram para entrevista. Não me contrataram, isso foi no mês de 2021, mas eles me deram um bom feedback. E eu passei a entender um pouco o que eles queriam.
Aí, depois, quando é final de 2021, abrem algumas vagas. Abriram três vagas com o mesmo perfil. Queremos alguém que estude plataformas, dados e sul global. Em Cardiff, no Reino Unido, na Universidade de York, aqui em Toronto e na Universidade de Toronto.
Acabou que eu passei para Cardiff e para Toronto. Fiquei uma semana decidindo o que ia fazer. E nunca tinha pisado em Toronto antes de vir para cá.
E nunca tinha feito nem sanduíche, porque, na época que eu estava fazendo doutorado, eu coordenava o mestrado junto, então, era uma coisa doida. E aqui estamos, na Universidade de Toronto. Já faz dois anos e meio que estou em Toronto.
E eu me sinto meio in betweenness (entre), porque a maior parte das minhas pesquisas continua no Brasil, na Argentina, e a filiação institucional aqui. Encontro aqui, na Universidade de Toronto, e é um dos motivos pelo qual eu aceito o trabalho, além de que é um bom trabalho, com boas condições de trabalho. Eu encontro aqui um departamento muito forte nessa área, muito forte.
Então, você tem David Nieborg, Alessandro Delfanti, Julie Chen, Nicole Cohen, tem uma professora nova chamada Vera Khovanskaya, que também estuda ferramentas de dados para trabalhadores, sindicatos, cooperativas. E, ao redor de Toronto, tem uma outra galera, assim, Nick Dyer-Witheford, Greig de Peuter, uma galerona. E são todos muito legais, também.
Não é aquele departamento que você fala, as pessoas ficam brigando o tempo todo. Então, isso dá um outro ânimo, né? Porque não é você sozinho, no departamento, fazendo só as suas coisas. Mas você tem aqui um brasileiro, uma chinesa, um indiano, um holandês, um italiano, pesquisando coisas mais ou menos semelhantes em diferentes geografias do mundo.
E isso traz uma força. Nossos doutorandos estudam coisas ao redor do mundo. A gente acabou de contratar um posdoc que estuda a indústria cinematográfica em Nollywood, na Nigéria.
Então, a gente pode dizer que a gente tem uma agenda de pesquisa coletiva global, assim, que perpassa todos os continentes. E agora estou com um esforço quase o contrário do que quando comecei a Newsletter. No início, a Newsletter era para mostrar o que o resto do mundo estava produzindo para o Brasil.
Agora estou meio que trazendo para o Canadá o que a América Latina já produz há muito tempo. Meu primeiro livro em inglês vai ser muito essa cara, 90% dos autores, Abdias do Nascimento, Álvaro Vieira Pinto, de mostrar como o Brasil e a América Latina já pensam essas coisas há muito tempo. Então, eu inverti algumas coisas.
A gente lançou uma revista, Platforms & Society, e temos dois professores da Universidade de Toronto como editores. O que não é muito legal, ter duas pessoas da mesma universidade, … E a editora perguntou por que tem dois canadenses e não tem ninguém nos Estados Unidos. A gente falou, na verdade, não são dois canadenses, é um brasileiro e uma chinesa que estão no Canadá.
E a gente pesquisa, a Julie pesquisa na China, enfim, tem uma pesquisa fantástica também na China. E essa revista também tem sido um palco para visibilizar coisas e tal. E agora, mais recentemente, as minhas pesquisas que continuam com as questões das cooperativas no Brasil e na Argentina, a gente ganhou um projeto no segundo semestre do ano passado, chamado Creative Labour and Critical Futures, em que eu estou voltando a estudar os trabalhadores na área da cultura.
Mas, pela primeira vez, eu comecei com Hollywood, foi o livro que eu quero ser famosa, e por isso comecei com… E estamos trabalhando com os sindicatos de Hollywood, a questão da IA, e é algo que eu pretendo… É um dos projetos fora o livro que a gente está tocando para os próximos anos, de pensar as cadeias globais de produção de arte, de pensar como isso afeta o trabalho na área da cultura. E algumas questões teóricas que envolvem esse tema, especialmente com um enfoque… Mesmo eu estudando pela primeira vez com um trabalho de campo na América do Norte, continua sendo a visão de um latino-americano sobre isso. Então, não é algo que eu pretendo me despir para poder dizer agora que “estou sendo Hollywood”.
Mas isso é muito interessante, porque tem coisas que, para eles, é muito natural. E para a gente que vem do lugar que a gente vem, a gente tem a coisa do estranho, e do familiar envolvido muito forte. Por exemplo, eu não sabia que Hollywood tinha um histórico muito forte, um sindicalismo muito forte, e que essa categoria no Brasil não se tem.
Enfim, como eu falei para vocês que uma hora era pouco para todas as questões, era por isso que só foi uma questão de 50 minutos.
Píi: Bom, é muito interessante assim te ouvir. Eu acho que as questões que você trouxe, da própria dificuldade para você se inserir como um estudante e pesquisador no começo, como também foram surgindo as suas várias questões de pesquisa, porque acho que quando a gente vê um profissional já influente na área, tudo soa mais coerente, mas vai sendo construído a partir de várias experiências, vão sendo construídos, enfim, as propostas.
E também achei muito interessante a forma como você conseguiu acessar um mundo muito mais internacional de pesquisa. E aí, até indo um pouco para essa linha, a gente gostaria de saber um pouco como você avalia a academia no contexto brasileiro e mesmo como a América Latina é vista? Acho que você já adiantou um pouco isso, trazendo a partir da sua trajetória, mas às vezes até num olhar crítico, mas para pensar como você imagina de fato que a gente pode aqui no Brasil se perceber em relação a esse contexto internacional de pesquisa, se como a gente é percebido também?
Rafael: Claro! Primeiro falando um pouco dos contextos institucionais das universidades. Fazendo a comparação, eu acho que no Brasil a gente tem mais pressão por produção do que em outros países. Eu acho que a questão, ao menos comparado ao Canadá.
Mas no Brasil eu vejo uma aceleração dessas coisas, porque quando eu estava aí dentro eu não falava tanto. E é uma coisa meio … na pressa, assim, também. Eu preciso marcar território, eu preciso de uma extrema competição, porque também os lugares não são muitos.
Isso eu vejo muito forte. Eu sinto meus colegas no Brasil mais estafados também, porque estão metidos em fazer um monte de coisa. O que tem que fazer, o que estão assumindo, porque tem que mobilizar as coisas com os próprios custos.
E aí tem uma diferença que é crucial, que é dinheiro. E o dinheiro não é somente a questao salarial do professor. Eu acho que seja o professor na USP em Oxford, em Toronto, na Alemanha, o professor nas principais universidades do mundo vai ganhar mais ou menos o que se ganha como professor da USP.
Em termos de salário, não muda. Mas você não… No Brasil a gente paga muito dinheiro do próprio bolso para fazer coisas de trabalho. Isso aqui é inconcebível.
Nesses tempos eu comprei uns dois livros para pesquisa, mas levei uma bronca. Por que você pagou com o seu dinheiro? Isso no Brasil, até a gente mudar um pouco a chave. Você vai ter dinheiro para você ir a dois, três congressos por ano, para onde você quiser no mundo.
Isso é uma questão… Eu acho que também é o dinheiro, mas também tem uma infraestrutura para isso. Ou seja, se eu quiser contratar um aluno de graduação, um aluno de pós, para ser meu assistente de pesquisa, essas funções são sindicalizadas. Os doutorandos aqui são sindicalizados.
Ou seja, eles recebem como se fosse CLT. E tem tudo definido. Eles são trabalhadores, não são… Em termos de visto, é um visto de trabalho, não é o visto de estudante.
Isso muda também a lógica de tanto estabelecer realmente o que cada um vai fazer, porque é um trabalho, de dar as tarefas para cada um, mas também de mais segurança. Uma coisa que eu sinto muito no Brasil é que como os professores estão muito cheios de burocracia, de fazer uma série de outras coisas, geralmente a tarefa de fazer entrevistas, por exemplo, fica com os doutorandos mestrandos. E essa é a parte mais divertida.
Aqui é o contrário. Os doutorandos vão fazer outras coisas. Vão fazer… Podem fazer tabelas.
Lógico, nesse horário, nas horas que são contratados para fazer aquilo. Podem ajudar a fazer revisão de literatura, mas, salvo exceções, o trabalho de campo é o professor que faz. Então, por exemplo, eu tenho colegas que vão fazer trabalhos… Inclusive, tem uma colega que trabalhou como anotadora de dados.
Foi ela mesma. Ela não terceirizou para nenhum… Tem outra coisa, que é o tempo. A gente tem… As aulas acabam em abril e voltam em setembro.
Esse é o nosso tempo para pesquisa. E isso faz diferença. Você vai ter tempo para escrever um livro, de você ter tempo para… Falando ainda de coisas que acho que aqui… Porque aqui acaba tendo essa ideia de que o seu tempo não vai ser recheado com todas as coisas.
Você vai ter… O tempo para pesquisa é um diferencial. O outro… Eu acho que a América do Norte foi muito safa, no bom sentido, porque ela não matou as editoras universitárias. Porque aqui eu tenho que escrever um livro como parte da minha progressão de carreira.
E o livro tem que ser publicado em inglês por uma editora universitária reconhecida. Então tem que ser Chicago, Princeton, Harvard, Yale. São todas editoras que são das universidades.
Claro, você pode publicar, às vezes, e justificar, puma Verso ou Pluto que são editoras mais militantes, digamos assim. Mas é um dinheiro que circula para financiar o próprio circuito de universidades na América do Norte. E a gente, no Brasil, matou as nossas próprias editoras universitárias.
E matou também esse conceito do livro, que continua sendo o principal ativo na América do Norte. Então, se eu falar “publiquei 300 artigos”, o pessoal liga ainda para livro. O que no Brasil virou, pelos contextos nacionais, porque a gente matou… as editoras estão mortas, estão cada vez com menos recursos para publicar.
Você tem que tirar do próprio bolso para publicar, muitas vezes. Então, eu vejo essa diferença também de um circuito ao redor das universidades em termos de apoio. Como eu falei, muito dinheiro.
O que ajuda você a fazer a roda girar. Agora, dois pontos que eu colocaria que, para mim, o Brasil e a América Latina como são vistos ou não vistos. Eles conhecem pouquíssimo da nossa teoria.
Pouquíssimo. Eu e o Jonas Valente escrevemos um texto recentemente para a revista Big Data & Society para mostrar que a América Latina não é só teoria decolonial. Não existe só teoria decolonial na América Latina.
Tem uma série de autores que não são decoloniais. Ok ser decolonial, mas tem uma série de autoras e autores que as pessoas precisam conhecer. Agora que as pessoas conhecem a teoria marxista da dependência porque o Ruy Mauro Marini foi traduzido para o inglês faz uns três anos.
Mas eu diria que 80% das coisas… Porque eu acho que o fato do Brasil ser um país continental e a gente lidar bem com o português e espanhol na América Latina e a gente ter um bom circuito de publicação em português eu não vou deixar de publicar em português por causa disso. Porque eu sou lido, sou citado em português, as revistas circulam são revistas que têm revistas boas. O fato de a gente ter criado um bom circuito é quase como se criasse uma dupla cegueira.
Os gringos não nos lêem e a gente não lê eles, porque a gente tem esse conforto de publicar nas nossas revistas. Eu acho que é bom ter o nosso circuito, bom se a gente refazer esses laços. Por exemplo, Ludmila Abílio, as teorias, as questões dela pra mim têm relevâncias mundiais.
Boa parte das nossas teorias são coisas que… mas se conhece muito pouco. A Roseli Figaro que foi minha orientadora, publicou a tese dela falando sobre a importância da comunicação para o mundo do trabalho em 1999. Eu vi depois gringos dizendo, anos depois, que nossa, a comunicação e o trabalho… Porque a Roseli nunca publicou em inglês.
Eu acho que esse tipo de disputa é necessário que a gente faça mais. E mostrar também que por muito tempo eu vi isso muito na comunicação do brasileiro quase ser um token dos gringos. Se você tem um projeto grande aí brasileiro, é meio, só obedece essas ordens ou é contratado para aplicar as teorias dos gringos no Brasil.
Estou falando o inverso de como você propõe epistemologicamente e teoricamente a partir da América Latina para pensar o mundo. E que é um esforço que também tem sido coletivo o Julian Posada que é um cara que fez doutorado aqui no nosso departamento, é professor em Yale, tem falado muito sobre isso de pensar as lentes epistemológicas latino-americanas. Eu acho que tem muita força.
Infelizmente é pouco conhecido fora. Outra coisa que acho que faz diferença no Brasil a gente faz muito a gente é muito coletivo eu acho. É muito coletivo, é grupo de pesquisa, é grupo de leitura, e aqui é meio cada um por si precisou eu vir para cá para ter o primeiro grupo de leitura dos professores do meu departamento voltado para digital labor.
É que a gente tem isso … então eu estou tentando trazer um pouco também de espírito, os alunos de doutorado sanduíche que estão vindo para cá também ajudam a ter um pouco esse corpo de transformar a Universidade de Toronto por dentro. Mas eu me sinto um pouco in betweeness e gosto disso também, como eu falei no início de quando estou aqui estar sempre “Brasil, brasileiros” enfim, de estar um pouco nesse entrelugar.
Píi: Muito bom ouvir isso. Eu acho que na primeira parte já tinha aparecido bastante essa coisa bastante multimídia também para refletir sobre os espaços. Achei interessante também essa questão do livro. De fato, acho que aqui, principalmente com pós-graduação se coloca muito o papel dos artigos e acho que isso implica em outras instituições também, como editoras e em qual é o jogo que elas vão estar colocando.
Mas aí uma terceira pergunta, nesse primeiro bloco, seria se você também queria falar um pouco sobre o Platform Work Inclusion Living Lab (P-WILL), o núcleo de Tecnologia do MTST e também de outras iniciativas que você colabora, participa, acho que você já trouxe ali falando de como que uma newsletter se transforma depois no grupo de pesquisa aí. Enfim, queria ouvir um pouco mais sobre.
Rafael: Ótimo. Acho que tem dois elementos aí. Um é de pesquisa em rede.
O P-WILL é o típico forma de pesquisa em rede e vários projetos que eu criei ou me inseri que são pesquisa em rede. Foi. Eu acho que tem dois lados. Um é pesquisa em rede e o outro é pesquisa com os chamados objetos.
Eu cada vez mais acho que embora cada um tenha uma agenda mais pessoal, sei lá, um conceito, uma narrativa, cada um vai ter mesmo um perfil. Cada vez mais nas minhas pesquisas eu divido aquilo que eu quero fazer. O único projeto que eu vou fazer sozinho e o resto como eu vou fazer aquilo coletivamente.
A minha entrada no projeto Fairwork AI, por exemplo, é um pouco essa, porque como você vai mapear as cadeias globais de valor de AI sozinho? Mesmo que seja você e um doutorando, não tem como. Você tem que trabalhar com gente de vários contextos, de várias disciplinas. O projeto Fairwork me mostra isso.
Outra coisa que eu não falei antes, mas que eu acho que é importante. Eu encontrei uma universidade, na Universidade de Toronto, um ambiente mais interdisciplinar aqui no Brasil. Eu estou agora na Faculdade de Informação da Universidade de Toronto, que junta gente de comunicação, de informação, ciência de dados, Human-Computer Interaction, Design, que é onde eu fico na pós.
Na graduação, o meu departamento é em Artes, Cultura e Mídia, que junta comunicação, artes. As pessoas podem produzir um artigo, produzir uma escultura, produzir uma peça de teatro. Um dos meus colegas de departamento na graduação construiu o maior arquivo hip-hop da América do Norte, no bairro onde nasceu e cresceu Drake, The Weeknd. Tem uma graduação em Indústria e Tecnologias da Música. O ambiente aqui, bem menos que no Brasil, não é assim… A gente está falando é comunicação, é sociologia, ou é geografia. Aqui pouco importa. A gente estava no nosso grupo que é sediado aqui na Faculdade de Informação lendo Braverman esses dias. Não tem essa das fronteiras disciplinares. Eu acho que esse é um ganho também.
E a gente fica muito mais tranquilo para navegar, aprender novas coisas. Claro que a gente está sempre falando de um lugar. Estou dialogando muito com geógrafos.
Eu não sou geógrafo, mas, às vezes o modo como eu interpreto o conceito de um geógrafo, também pode ser uma coisa interessante. Como eu falei antes, eu me descobri não-monogâmico em vários aspectos, tem esse também. Eu estou agora trabalhando com Queer Studies, que é a primeira vez também que estou trabalhando nisso.
E tem tudo isso para dizer a importância dessa pesquisa em rede e de conectar com outras redes de pesquisadores e de fazer coisas juntos. O Platform Work Inclusion Living Lab é um projeto que dentro do Queer, na União Europeia, é chamado de COST Action. O que é COST Action? É um projeto para fazer network.
Aqui no Brasil, o mais perto, que eu estou envolvido com também, são os INCTs, do CNPq, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, que se juntam 20… Bom, eu acho que o UAI é um pouco esse espírito também. Não necessariamente vai todo mundo se reunir para fazer uma pesquisa, mas cada um vai trazendo sua porção de pesquisa e a gente vai conectando. E é muito legal isso, porque ao mesmo tempo ele é uma coisa de Lego, mas que você traz as pessoas junto para colaborarem também para cima daquilo.
Esse projeto do Creative Labour and Critical Futures que eu estou coordenando, tem 11 professores da Universidade de Toronto e agora, a gente está começando agora… Então a gente vai colocando as peças à medida que elas forem colaborando com a gente. E aí tem dinheiro para residência de pesquisa, residência artística, residência… Vou estar recebendo, vou receber aqui em abril, uma doutoranda da Universidade de Concórdia, Elena Altheman, que é aquela que eu comentei com vocês, que foi roteirista do Irmão do Jorel, do Chico Bento, do Menino Maluquinho.
E o último capítulo da tese dela, ela fez uma tese sobre a indústria da animação no Brasil. O último capítulo é sobre IA. Pô, tem tudo a ver, vamos fazer coisas juntos.
Então, como se fosse fazendo os matchs de pesquisa. Então o Creative Labour and Critical Futures é isso também. A gente tem 11 pesquisadores, todos interessados em questões de cultura, de trabalho na cultura e IA, mas cada um na sua.
Tipo, um DJ de hip hop está interessado em como os músicos estão incorporando isso ali. Eu estou mais com a coisa das coletividades, os sindicatos, cooperativas, como eles estão entendendo a questão da IA. O outro está trabalhando com mais uma economia política.
E isso é muito legal, porque às vezes eu sinto, não em todos os pesquisadores, mas essa ideia de que você precisa dominar tudo. Você não vai dominar tudo. Você vai pegar o todo na conexão.
Eu acho que esse tipo de projeto é algo que eu sempre gosto de estar envolvido. Porque isso demonstra a força do coletivo, com todas as dificuldades de construir. E também de se pensar em pesquisas de caráter globais.
Eu acho que essas duas, de multidimensional e de caráter global. A segunda parte da sua pergunta, eu já tinha usado o MTST, desde que eu estava na Unisinos, eu fui também me aproximando cada vez mais de fazer co-pesquisa. E de pensar junto com os trabalhadores essas atualizações da enquete operária, da pesquisa-ação, da pesquisa participativa.
Felizmente, na Universidade de Toronto, eu também tenho mais liberdade. O dinheiro nem é tanto a diferença. Tem uma diferença de uma liberdade institucional para fazer esse tipo de pesquisa.
Porque no Brasil, o Comitê de Ética, que vem da Saúde, eles não entendem o tipo de pesquisa que a gente faz. No Brasil, se você vai entrevistar um entregador, você está tirando o tempo de trabalho dele, e é proibido que você pague mesmo se não tiver dinheiro de financiamento pelo tempo desse trabalhador. E aqui… porque entende isso como antiético, como vai enviesar… que para mim é uma visão positivista de ciência.
E aqui é o contrário. O Comitê de Ética quer garantir que você não faça uma pesquisa extrativista. Então… Depois vou escrever um texto metodológico sobre isso.
Essa pesquisa que a gente está com três coletivos de São Paulo, três coletivos de Buenos Aires, em São Paulo é o Núcleo de Tecnologia do MTST, a Senoritas Courier e Maria Lab, ou seja, dois de tecnologia e um de entrega. E na Argentina, a Federação de Cooperativa de Tecnologia, uma cooperativa chamada Alternativa Laboral Trans, só de pessoas trans, e Central, que é uma cooperativa de entregadoras da cidade de Salta. Então, dois de tecnologia e um de entrega.
O projeto acabou virando algo de aprendizados coletivos. Então, toda a interação deles com o projeto, isso é remunerado. A gente fez um esquema que está no desenho do projeto.
Cada coletivo escolhe dois representantes para estar nas reuniões do projeto, e aquilo vai sendo remunerado por hora. Eles podem representar os representantes de acordo com a auto-gestão deles. A gente fez viagens juntos da Argentina para o Brasil e do Brasil para a Argentina.
A gente já produziu um relatório, deve ser em junho, por aí. A gente fez um artigo de revista coletiva de revista acadêmica, com três autores. Acho que se publica esse ano.
E é um desafio também, o desafio de como a gente pensa as relações, nossas com as comunidades com as quais a gente estuda. Não sei se posso dizer isso tão publicamente, mas a gente enfrentou como que essas pessoas, por ser um objeto de pesquisa, quando elas estão no lugar de autoras, elas sofrem com isso, porque o sistema não foi desenhado para elas nesse lugar de autores. Então, por exemplo, a gente vai ter que publicar esse texto fora do Brasil porque as revistas acadêmicas não aceitam pessoas que não sejam doutoras ou não aceitam tantos autores numa revista acadêmica brasileira, por não estar nos cânones.
Eles chegaram, inclusive, a oferecer que só eu fosse autor e o resto estivesse como agradecimento. Entendeu? Então, acho que enfrentar um pouco isso é interessante. Óbvio que, tendo mais uma vez a questão da infraestrutura e do dinheiro, aqui acaba caminhando juntos.
E uma parte, eu falo que uma parte do meu trabalho aqui também é, vamos dizer assim, de maneira polite, como o Canadá quer que eu também continue pensando na América Latina, que esse dinheiro vá também para a América Latina e não fique aqui e que a gente possa redistribuir o dinheiro, digamos assim, dos projetos. E aí tem rolando algumas coisas muito interessantes nesses últimos tempos. Antes dessa pesquisa mesmo, a gente, com o MTST, fez uma cartilha que foi apoiada por nós, que é uma cartilha que eu ajudou a referência de documentos deles sobre soberania digital popular.
Então, uma coisa de uma discussão sempre nossa com eles. Tem esses materiais que estão em multimídia para sair. A gente fez um workshop em janeiro juntos, que foi muito bom, também um workshop da pesquisa nossa, que é para pensar formação.
A relação com o governo federal também vem um pouco dessa parceria que a gente fez um livro junto, que eu coordenei, que a gente contratou dois jovens pesquisadores, o Emanuele Rubim e o Lucas Milanez, com essa ideia também de, mais uma vez, de produção coletiva.
E sempre a pergunta que eu faço para eles ou para os coletivos com os quais estou trabalhando, é o que vamos fazer juntos? Surgiu um edital. Não faço assim, eu desenhei, é mais demorado, inclusive, porque o que vamos fazer juntos? Tem um edital aqui, o que a gente pode fazer junto com esse edital?
Isso foi muito descrito por duas colegas minhas de departamento, o livro chama Heavy Processing. Elas não contaram a minha trajetória exatamente, contaram a trajetória de pesquisa delas.
Elas são T.L. Cowan, Jas Rault. E elas falam algo muito semelhante do modo como elas trabalham mais nos estudos LGBTQIA+, com comunidades, inclusive elas fazem performances de cabaré e tal. Uma realidade muito diferente como os valores de pesquisa nossos são muito conectados.
E de que maneira pensar isso? Por exemplo, nesse projeto São Paulo-Argentina a gente foi fazer uma fala na Sorbonne, coletiva, ano passado. Então foram todas pagas pela Sorbonne. Então essa ideia de tanto ocupar os espaços, de pensar com pesquisa, de pensar nossos lugares também como acadêmicos, leva uma série de desafios, claro.
Inclusive de como escrever, do que não escrever, de como construir essa relação. Eu acho muito mais difícil e lento do que fazer uma pesquisa, vejamos, vou lá, entrevisto, coleto os dados, analiso e deu. É claro que nem toda a minha pesquisa tem esse tipo de desenho.
É o que hoje tenho curtido mais, mas tem outras que também são um pouco mais tradicionais. Mas, para mim, das duas respostas, dos dois eixos, seja no P-Will, com o MTST, com os coletivos, o grande lance está em como construir coletivamente conhecimento.
Píi: É muito bom, assim, acho que muita coisa para pensar, acho que até de troca, a gente aqui, por exemplo, do UAI, organiza uma iniciativa.
Bom, vou trazer agora o segundo bloco de questões sobre produções sobre inteligência artificial e plataformas. Bom, primeiro, gostaríamos de começar com algumas questões gerais sobre a relação entre plataformas digitais e trabalho, que parece ser uma preocupação central em suas publicações. Em 2019, você publicou o artigo Plataformização do Trabalho entre a Datificação, a Financeirização e a Racionalidade Neoliberal.
Nele, você explica como os dados alimentam as plataformas digitais e, por sua vez, os algoritmos automatizam e organizam o funcionamento dessas plataformas. Você também atenta para o fato de que os algoritmos são produzidos tanto pelas empresas desenvolvedoras quanto como resultado da interação de pessoas comuns com esses algoritmos. Ainda assim, tem uma relação bastante assimétrica entre desenvolvedores e usuários.
Você poderia falar mais sobre os algoritmos, o papel das interações sociais e desses desequilíbrios de poder?
Rafael: Ótimo. Ele talvez seja o artigo mais lido meu, não é? E eu tenho discordância dele hoje. Eu acho que a versão mais atualizada dele está no livro que eu e a Julice Salvagni escrevemos juntos, chamado Trabalho por Plataformas Digitais, que tá pela editora do SESC, e está disponível gratuitamente, só em e-book, por enquanto.
Mas é o livro que a gente faz uma introdução ao tema, que a gente expande aquilo que está no artigo.
Começo pelas críticas que eu tenho hoje, minhas àquele texto.
Eu chego a dizer que a gente tem plataformas que são mais definidas pela geografia ou pela localização, tipo o transporte. Dizendo que você não pode pedir um Uber na China se você está no Brasil. Um motorista que está na China não vai atender porque tem essa coisa mais da localização do local.
E as outras que seriam plataformas mais globais de freelancer, de data workers e coisa e tal. E a gente vai refinando os argumentos e vai refinando também a parte das discussões, os termos.
Eu não uso mais plataformas de micro trabalho, fiquei falando mais de data workers e tal. E refina também as tipologias. Tipologia é sempre uma maneira de você simplificar o mundo, de entender melhor o mundo, mas também tem os riscos do que fica de fora.
E a minha principal crítica, que depois no livro isso já está de uma outra forma, que a gente descobre que as plataformas ditas globais também têm marcações geográficas. Ou seja, se você é um trabalhador indiano que está na mesma plataforma freelancer com o brasileiro, o indiano vai estar na frente por causa do fuso horário.
Então você vai vendo que as duas têm marcações espaciais e temporais e que não é isso o que as diferencia. Isso é para falar um pouco que é interessante ler os textos em determinadas linhas de tempo. que eles não são as respostas para tudo, mas naquele momento, no que significava pesquisa naquele momento, que parece pouco tempo, saiu de 2020 esse texto, são seis anos já, muita coisa do que vem acontecendo. Algumas coisas saem. O próprio Nick Srnicek, que é o autor do livro Capitalismo de Plataforma. Ele chega a falar numa entrevista com o DigiLabour que ele discorda da tipologia de plataformas que tá no livro dele, que ele faria isso de outra forma. Porque isso acaba ficando velho rápido demais, porque o mundo muda.
Sobre o papel dos algoritmos, ali tinha uma preocupação, o modo como eu coloquei aquilo, tem dois, duas coisas não ditas. Eu queria ser mais dialético em relação a duas visões dominantes. Uma, que era uma visão mais latouriana, uma visão mais de teoria ator-rede, de quem segue um pouco disso, de colocar o papel dos não humanos e, muitas vezes, esquecer essas relações de poder.
Do outro, eu queria evitar uma perspectiva que fosse… A questão é que os algoritmos são baseados em trabalho humano, que são bases dessa empresa. Mas eles também são tecnologias e que também atuam no cotidiano. Então, eu queria evitar dois extremos quando falo que os algoritmos são resultado do trabalho humano e têm uma certa intencionalidade na produção, considerando a economia política dessas plataformas, mas que também não só são resultados, porque são baseados em dados dessa relação com os usuários, mas também é considerar essa relação de poder que é desigual. Você não pode equiparar os usuários ajudando com seus próprios dados a ter um melhor Google Maps ou ter alguma coisa assim com o papel da Google em organizar isso.
Porque o valor está realmente em como cientista de dados da Google e vai mapear isso. Estou orientando uma tese sobre os influenciadores virtuais. E a gente tem falado muito disso, sobre uma das questões da tese dela, chama Jul Parke. .
A maior parte dos influenciadores virtuais são mulheres racializadas. Uma brasileira, uma coreana, uma sul-africana, ainda subglobal. A maior parte das empresas que detêm isso são, em geral, quase todas masculinas e baseadas em países tipo os Estados Unidos.
Então, pensar essas relações de poder, ou pensar esses algoritmos, tanto como eles agem no cotidiano quanto de uma maneira mais institucional, acho que tem a ver um pouco com a minha trajetória também, de tentar articular um olhar mais de estudos culturais, da vida cotidiana, sem esquecer um pouco do macro. É então acho que esse.
E eu tendo a dizer que entre plataformização e dataficação, a dataficação é mais perene. Inclusive porque a dataficação está na base do modelo de negócio das plataformas, os dados como extração, dados como forma de capital, está na base das plataformas.
Hoje em dia, nem todo trabalhador que alimenta I.A. trabalha por plataformas. Trabalha, às vezes, em call centers, trabalha dentro das empresas, mas a questão dos dados está ali. Tem um objeto que eu adoraria pesquisar um dia, não sei se terei fôlego, e eu queria muito estudar a dataficação do futebol e o papel que hoje ganham, de maneira central, esses setores de scout nos times de futebol.
Porque também no futebol brasileiro não é só uma questão de dinheiro. Lógico, os times com mais dinheiro tendem a ter jogadores mais caros. Mas o sucesso do Botafogo também é explicado pela dataficação e como todos os movimentos dos jogadores são trackeados.
Então, eu acho que isso, embora todos os meus trabalhos mais recentes sejam obviamente focados em plataformas, eu acho que o conceito de plataformas e plataformização, em algum tempo, ele some. E o de dataficação continua. Porque eu acho que isso fica mais no tempo, não importando a forma que aquela forma tecnológica se coloca.
Nos debates agora sobre a arquitetura, sobre essas coisas, para mim é a dataficação que continua. E por aí vai, quando se fala desde o Globoplay, que até para mim é também a dataficação que é o cerne da coisa.
Yasmin: Muito legal, Rafael. Gostei muito. E ainda nesse tema de além da plataformização, você argumenta que para entender a plataformização é preciso pensar em termos mais amplos do que o conceito de uberização. Você falou disso na dataficação. Você menciona três principais tipos de trabalho de plataforma. O que recruta trabalhadores de localidades específicas, exemplo de uber, entregadores de plataforma de crowdwork ou microtarefas, comuns no treinamento de IA, e moderação de redes sociais. E as plataformas de trabalho freelancer, mais qualificado. Você poderia falar um pouco mais sobre esses três tipos de trabalho e se há outras categorias de trabalho plataformizado relevante?
Rafael: Tem. A gente tem uma variedade de trabalho por plataforma. Tem um texto, depois, que escrevi com a Ludmila Abilio e o Henrique Amorim, que é meio a gente tentando se conversar um com o outro sobre esses dois conceitos, uberização e plataformização.
O que a Ludmila Abilio argumenta é que o conceito dela de uberização é que seria um processo mais amplo, que envolve… Eu concordo com o processo que ela descreve. Talvez eu não concorde com o nome. Que é a ideia de que o modo como as plataformas chegam, como nasceu agora, nascem de maneiras, que ela vai chamar do avesso da viração, uma coisa assim, que as plataformas se apropriam de modos periféricos já existentes.
Seja no trabalho doméstico, seja… Então, acho que o que a Ludmila Abilio nos convida a pensar, e eu gosto muito dessa perspectiva, que é pensar a historicidade disso. O que se mantém? Eu costumo dizer que não gosto da expressão “gig economy”, porque dá a impressão de que a economia dita dos bicos é uma coisa nova. Primeiro porque a expressão de gig no próprio inglês já nasceu com os músicos que nunca tiveram um trabalho fixo e vão fazer gig.
Mas, no Brasil, a história da economia é uma história da economia informal. E isso acho que ajuda a entender um pouco a relação com a CLT, enfim, a relação com, eu falo
Se pegar o exemplo de uma mulher da classe trabalhadora brasileira que durante o dia faz trabalho doméstico, e na noite tem um carrinho de hot dog, a mudança não está em fazer trabalho doméstico, fazer hot dog, está em como a introdução das plataformas gera novas relações ali, seja para circular o hot dog dela à noite, seja para fazer um trabalho doméstico.
A Nadya Guimarães, aí, da sociologia da USP, está fazendo um ótimo trabalho num projeto chamado “Who Cares?” (Quem cuida?) E que vai pensar um pouco esse histórico da intermediação também, que não nasceu com, da mediação, que não vai nascer com as plataformas. Tinha as agências contratando.
Então, eu gosto muito dessa coisa do histórico. Tem uma grande amiga minha que também passou aqui, pela FFLCH. A professora Lorena Caminhas, atualmente professora da Universidade de Maynooth, em Dublin.
Ela tem estudado trabalho sexual com plataformas há um bom tempo. A tese dela foi sobre as camgirls. Antes de ter o OnlyFans, era por Skype. Mas a digitalização do trabalho sexual não nasce com o Skype.
Você tinha essas tecnologias de informação e comunicação. Você tinha o disc sexo nos anos 90. Depois você tinha o bate-papo, não sei o que lá. Então, é interessante você pensar a história das tecnologias e do trabalho e evitar a noção muito de que as plataformas são uma ruptura. Eu gosto muito de pensar esses históricos, assim.
Porque ajuda a gente a pensar as permanências e mudanças, o porquê determinadas coisas são assim, o porquê os trabalhadores preferem trabalhar pelas plataformas do que era antes. Isso, acho que evita outros problemas.
Eu não entraria hoje exatamente nessa tipologia. Ali o que que eu estava querendo dizer era mais que existem nos três tipos de pessoas que trabalham no local, pessoas que fazem freelas para tudo quanto é lugar e pessoas que alimentam inteligência artificial. Essas três coisas existem, ainda. Mas é como se explodisse isso e vai para tudo quanto é lugar.
Que aí pode ser na psicologia, no advogado. Se a gente for pensar o que a própria Rosana Pinheiro-Machado tem falado das próprias mídias sociais como plataforma de trabalho, que não foram desenhadas para esse fim, mas as pessoas usam o Instagram para vender bolo de pote. Eu acho que um dos argumentos dessa expressão que eu estou no texto é como se a plataformização, ela generaliza, de diferentes formas. Vai existir de diferentes formas em cada ocupação, em cada setor.
Na FFLCH, o Alvaro orientou o Bernardo Ballardin sobre a plataformização na área da educação, que também é um outro setor. Na área de e-commerce, por exemplo, que também é muito forte no Brasil.
E não dá… Às vezes eu sou cobrado assim. As pessoas vêm falar comigo no bar e falam que eu não estudo OnlyFans. A gente não dá conta de tudo sendo uma pessoa só.
Porque cada universo que você entrar também no campo, é um campo que é diferente. Que é superinteressante. Todos esses são interessantes.
Tem uma colega chinesa, Lin Zhang, que tem um livro chamado The Labor of Reinvention. É muito doido que ela vai falar de mulheres revendedoras de e-commerce na China. Isso é muito semelhante ao que está no livro da Ludmila Abilio, sobre o papel da revenda. Desde o revendedor de cosméticos.
E mais doido do que isso é pensar que o histórico do trabalho informal no Brasil tem essa figura da revenda como uma figura central. Os meus pais iam para o Paraguai revender produtos tipo brinquedos, bebida alcoólica, não sei o quê.
Depois fizeram a vida toda deles revendendo bijuteria, foleado ouro e prata, não sei o quê, e ai. Então esse vocabulário é muito presente na minha vida. Eu vou ter que fazer um livro sobre isso.Não sobre isso, mas sobre o que eu vou contar agora. Porque isso que eu estou contando vai ser quase um preâmbulo.
Quando eu fui pesquisar as fazendas de clique, eu acabei descobrindo revendedor de conta fake.
Pessoas que faziam contas, isso está, inclusive, nos vídeos animados que a gente fez do Digilabor sobre fazendas de clique. Está em um artigo acadêmico também. é como se o trabalho de fazendas de clique atualiza a figura desse revendedor.
Eu até falei para meus pais que essa nova moda não é mais revender. Minha mãe revendeu até produtos eróticos por e-commerce. é fazer é revender contas para o Instagram, para o TikTok, para vender para pessoas que querem bombar seus Instagram.
E agora a minha mãe se transformou numa consultora de inteligência artificial. E é muito interessante pensar isso. E essa e o que está começando…
Estou chamando esse projeto de “minha mãe é uma peça acadêmica”. Eu pesquisando a minha própria mãe. Isso eu estava levando quase como uma piada no dia a dia. Realmente, eu vou endereçar como minha próxima pesquisa.
Porque fui descobrindo, especialmente, mulheres que atuam como consultoras de inteligência artificial na América Latina. E num espaço que não são tão universo precários como os data workers que alimentam o AI e estão longe de ser as pessoas da empresa de tecnologia. Então, acho que tem um universo muito rico dentro do que se chama de plataformização e dataficação que nem sempre está visível nos jornais.
Por exemplo, essa coisa das fazendas de clique que a gente foi… Tem uma pesquisadora brasileira, a Nina Desgranges, que está estudando a plataformização das apostas com a questão das bets. Então, acho que tem um universo grande de objetos para estudar. De maneira que eu acho, por outro lado, que falar ou pesquisar entregadores de motoristas, a gente chegou no nível de saturação também das pesquisas, do que elas vão apontando.
Só que as pesquisas acabam apontando quase para as mesmas coisas. Então, chegou um ponto que está quase mesmo de saturação.
Píi: Muito bom, te ouvir. Realmente, seguir essa linha de pesquisa sobre plataformização do trabalho, datificação, é muito rica. Aliás, eu até esqueci de falar no começo, eu sou orientando do Álvaro Comin e da Bianca Freire-Medeiros.
E aí, só para comentar, a gente também tem uma colega que entrou comigo no mestrado, que é a Julia Rodrigues, que ela está pesquisando Onlyfans e Privacy. Também nessa chave do trabalho de plataformas, bem legal. Então, vou para próxima pergunta.
Então, na terceira questão, ainda sobre esse mesmo artigo, você explica como a gestão algorítmica propicia o rastreamento e a avaliação permanentes, a automação da tomada de decisões e uma menor transparência quanto às regras que guiam os algoritmos implementados. Você poderia falar mais sobre essa gestão algorítmica e como ela se alinha a uma racionalidade neoliberal?
Rafael: Consigo. Primeiro, a primeira parte. A segunda, eu tento desmembrar. E essa foi outra expressão que eu mudei ao longo dos tempos. Eu passei a usar mais gerenciamento algorítmico.
Porque eu acho que isso também se liga… Toda uma trajetória da sociologia do trabalho principalmente gerenciamento do trabalho. Porque, no inglês, é tudo management. Mas, em português, eu tenho usado mais gerenciamento.
Tem uma coisa, tem um texto do Niels van Doorn, que é um colega holandês que está com a gente na Platforms & Society, e a Julie Chen, que é minha colega daqui de departamento. Eles têm um texto, que eu não lembro o nome do texto, mas é o único texto dos dois juntos. E que eles vão perguntar o que vem primeiro, a dataficação ou o gerenciamento algorítmico? O que é mais importante? E o lance do texto é… Todo mundo está olhando para o gerenciamento algorítmico, mas ele não é nada sem a dataficação.
É aí que reside a extensão. Mas, claro que o gerenciamento algorítmico tem um papel. E acho que, ao longo do tempo, as pessoas foram lidando melhor com o que se chama de imaginários algorítmicos.
Ou seja, os trabalhadores foram aprendendo a lidar e falar… Eu sei que vai ter mais corrida na hora do almoço. Eu sei que tipo de foto eu tenho que postar para conseguir mais views. A gente vai aprendendo a lidar com aquilo.
Que é uma das questões mais interessantes da própria pesquisa focada em algoritmos. Que é como as pessoas lidam com eles no dia a dia. E que impressões que têm sobre eles.
Sobre seja o Spotify, o Ignacio Siles, tem uma ótima pesquisa sobre streaming e áudio também na Costa Rica. O livro chama Living with Algorithms. O da Paola Ricaurte, também no México, de pensar isso. A partir também de como as pessoas vão tentando…
Eu tenho um texto meu com uma galerona chamado Platform Scams, e esse texto. Depois eu posso usar melhor a história desse texto. Mas ele vai mostrando as maneiras como os trabalhadores vão tentando driblar o poder algorítmico ou driblar aquilo que está colocado para eles. Seja por meio de microtáticas, até de recusa ao próprio trabalho. Ou de saber como maximizar os ganhos.
E a gente argumenta que isso não é um golpe. Isso é uma reação… As golpistas são as plataformas. Eles só estão reagindo ao golpe delas.
Não é chamando eles de golpistas porque estão usando dessas táticas. Porque a gente está falando também de luta de classe. Ao final do dia.
Então, acho que é interessante pensar isso. E que esse gerenciamento algorítmico nunca é só algorítmico. Ele é sempre acompanhado de uma série de outros processos.
Mas, claro, o desenho das plataformas ele facilita determinadas formas de controle. E tem uma parte pouco explorada no estudo de plataformas que é mais difícil de acessar que é quem que desenha esses algoritmos. Quem é que ajuda a desenhar essas plataformas.
Por isso eu falo que, depois de ter conhecido gente que leu esse texto nosso e ter descobrido mais coisas, as empresas sabem como elas vão golpear os trabalhadores pelo desenho da plataforma e pelos algoritmos.
E depois eu posso contar com detalhes em algum momento. E no projeto Fairwork sempre teve no Brasil, nos dois anos que a gente pilotou o projeto, as principais reclamações são ou de condições de trabalho e saúde, segurança e saúde, ou da questão do gerenciamento algoritmo. Especialmente que eles não conseguem falar com uma pessoa real.
E isso que eles não têm respostas se eles são bloqueados, se eles são… E não recebem uma justificativa. Então todo esse tema do shadowbanning , que é você ficar numa zona meio cinzenta, que acontece em várias plataformas. Acontece no Instagram, pode acontecer no iFood, pode acontecer em várias plataformas, como o shadowbanning é um efeito desse gerenciamento algoritmo, mas também não é puramente algoritmo.
Você pode ser manualmente colocado numa lista VIP ou numa lista de quem não deve acessar. Então essas coisas, o novo e o velho se combinam ali também. E a relação disso com uma governamentalidade ou com o neoliberalismo, ou com uma racionalidade neoliberal, as pesquisas mostram de lá para cá o quanto que isso não é uma… É claro, os algoritmos são construídos com esses olhares mesmo das próprias empresas em mente.
Mas isso é diferente de pensar isso como uma expressão de neoliberalismo e de dizer que os trabalhadores estão aceitando tacitamente isso como se faltasse consciência de classe, como se faltasse determinada… Sei lá, que eles fossem neoliberais e comprassem o neoliberalismo. São coisas diferentes. Eles sabem lidar tanto com os algoritmos quanto com esse lugar.
São muitas vezes efeitos também do que está programado. Efeitos, não vou falar que sou muito funcionalista, mas de dizer que às vezes eles cumprem aquilo que eles estão cumprindo. Não porque eles acreditam naquilo que eles estejam aceitando.
Eu acho que, se já teve algum momento em que os motoristas e entregadores se pensaram enquanto empreendedores, isso passou há muito tempo. Eu acho que também houve uma jornada de aprendizado coletiva em que hoje é difícil você achar um que…
Eu acho que é uma jornada de aprendizado coletiva, mas a evolução das plataformas em termos de como elas chegaram que não vejo ninguém, barra quase ninguém, dizendo que aqui eu posso… Uma coisa é você falar que aqui eu posso fazer meus próprios horários, mas é diferente de dizer que isso tem a ver com o discurso do empreendedorismo né.
Então, eu colocaria muito mais nuances também em como que, é claro, vivemos em um… O capitalismo e o neoliberalismo estão compostos, mas como a gente lida com eles é uma série de nuances.
Yasmin: Bem legal. Você acabou respondendo um pouco da próxima pergunta. Eu conheci você no seminário de “IA responsável”, organizado pela Cátedra Oscar Sala no IEA. E você destacou a falta de letramento em IA da população brasileira. Aí, quanto a isso, como essa falta de letramento afeta especificamente essa relação de trabalho, em vista dos avanços da plataformização? E já pensando na população em geral, como relacionar esse letramento com o papel da opinião pública e dos movimentos sociais na regulação tecnológica e social global? Quais medidas você acredita serem essenciais para garantir a segurança dos dados no Brasil e uma presença responsável da inteligência artificial?
Rafael: Começo com essa ideia de letramento, porque aí é uma… Isso virou um certo chavão das pessoas dizer que, quando fala de desinformação, quando fala de outra coisa, que precisa incorporar o digital literacy. E essa ideia de media literacy que vem de antes vem de toda uma tradição europeia, muitas vezes até funcionalista, de pensar que as pessoas são um vazio e que precisa de um literacy para preencher elas.
E a resposta latino-americana, as noções de media literacy, historicamente vieram do campo da educomunicação, que hoje virou… Na USP tem uma licenciatura em educomunicação. É que eu não sei o quanto meus colegas de lá estão atualmente pensando em educomunicação e IA, eu temo que não. Isso pode publicar, que daí eu faço questão, assim, que o Rafael cobra publicamente.
Teve um tempo, eu fui professor temporário na USP, na ECA, depois que terminei o doutorado, fiquei dois anos como professor no departamento de educomunicação. Então, acho que tem isso, a noção de educomunicação parte da realidade latino-americana, parte do Paulo Freire, para relacionar comunicação, tecnologias, e pensar esse aprendizado com as tecnologias que as pessoas não são… Elas vêm com a bagagem delas, elas não vão ser letradas naquilo
E isso, a professora Maria Aparecida Baccega, que foi uma das fundadoras desse campo de comunicação e educação, e era professora de telenovelas, ela falava quando ela já era… Como posso falar isso? Quando ela já era velha, talvez velha seja a palavra menos… Quando ela já era velha, ela já falava assim: Eu não sei mexer no celular, mas não significa que não tenha literacy para isso, significa que eu preciso interagir mais com isso, mas que eu vou colocar toda a minha bagagem também de vida quando estou utilizando aquilo e reapropriando daquelas tecnologias.
Então, como você vai pensar pedagogias, críticas, eu prefiro chamar assim, com as tecnologias, isso para mim vai… Eu nunca escrevi sobre isso, talvez no livro que estou escrevendo sobre aprendizados e fracassos, isso vai estar um pouco mais definido da minha visão sobre isso, mas acho que a gente tem na América Latina o potencial teórico de oferecer também respostas que venham de baixo e que não sejam, assim, o curso de como você vai aprender o que é IA, porque senão a gente vai cair não só no elitismo, mas em uma coisa que pedagogicamente não faz sentido.
Então, eu diria que, mais do que letramento, o que a gente precisa é pensar em pedagogias críticas ou circulação dessas palavras em relação a temas como governança de dados, o que são dados, o que plataformas fazem e não fazem, e inteligência artificial. Eu acho que a inteligência artificial é o mais difícil porque ela já vem recheada de… É mais difícil, mas também é mais interessante, talvez, porque ela já vem recheada de imaginários ao redor dela.
Tem um projeto da Universidade de Cambridge que eu gosto muito chamado Better Images of AI e eles vão… Eles fizeram até uma cartilha dizendo que a maior parte das representações em bancos de imagens, quando você põe IA, vem uma imagem que é azul ou vem uma coisa que é a interação do homem com o robô imitando coisa. A gente precisa de imagens mais realistas para que as pessoas também tenham representações mais realistas sobre o que a IA é e o que não é.
Então, produção de materiais que também ajude a mostrar que a IA depende de data centers, o custo ambiental disso, começar a conectar melhor essas coisas de uma maneira que não seja mágica ou até coisas que o próprio jornalismo não tem representado da melhor forma, dizendo que a China construiu seu próprio IA e o Brasil, quando vai construir a sua.
Gente, IA por IA tem um monte aí brasileiras, o que não tem uma versão do ChatGPT. Ou seja, são coisas que o fato da IA A expressão IA para mim é sempre uma expressão guarda-chuva, que é deslizante.
O melhor livro que eu li sobre isso se chama Artificial Whiteness. Não sei se é o nome do autor [Yarden Katz], mas ele vai falar como historicamente a palavra é usada para diferentes contextos para significar diferentes coisas. É uma palavra valise que ela vai cabendo… então as pessoas têm historicidade de IA como essa coisa ou mágica ou maléfica.
Do ponto de vista quase de conto de fadas, de Hollywood e tal. É assim como a palavra robô também. Tipo, eu fiz um robô, mas a pessoa já imagina vindo um robô de Hollywood.
Então acho que saber como funciona e como não funciona é parte do nosso trabalho geral como educadores. Tem um projeto que eu gosto muito chamado Data Workers Inquiry. E ontem eles lançaram…
Eles também fazem coisas em vários formatos. E ontem eles lançaram, vou colocar no chat para vocês, um vídeo produzido por uma trabalhadora de dados no Brasil. Então está em português. O vídeo é muito bem feito.
Eu acho que a gente ajudar a circular esse tipo de coisas é um dos desafios que a gente tem também. Porque muitas vezes… Deixa eu pegar aqui. Muitas vezes os materiais estão lá, mas não circulam porque… De qualquer modo, como a informação circula nos e-mails digitais, acaba sendo restrito. Então isso é também um desafio que a gente tem.
Píi: Bom, ano passado você publicou em co-autoria com Issaaf Karhawi um artigo sobre produtores culturais brasileiros marxistas que dependem de plataformas. Intitulado Struggling with Platforms, Marxist Identities, Cultural Production and Everyday Work in Brazil. Em certos momentos o artigo aborda as plataformas como instituições plataformizadas ou espaços institucionais. Quanto a isso, primeiro, em algumas abordagens institucionalistas, o conceito de instituição fica mais limitado a um conjunto de regras e práticas sociais estáveis. Porém, no artigo, você destaca o papel que as identidades sociais jogam dentro das plataformas.
Então, você poderia falar mais sobre a relevância de abordar a questão das identidades em estudos sobre plataformas digitais? E nesse sentido, em segundo lugar, como essa mobilização de identidades sociais nas redes fomenta formas de resistência e enfrenta constrangimentos frente ao modelo de negócio das grandes plataformas?
Rafael: Vou começar com a primeira. Eu só pediria para, quando for publicar, falar sobre o artigo, mas não mencionar os nomes dos influencers, porque isso está mais na coisa do artigo, e acaba que o próprio artigo, claro, baseado nela, mas o próprio argumento vai além.
Esse artigo faz parte de um dossiê da revista International Journal of Cultural Studies sobre plataformas de produção cultural e é editado por colegas que têm se debruçado sobre isso, entre eles o David Nieborg, que é meu colega aqui de departamento, a Brooke Erin Duffy, da Universidade de Cornell, e o Thomas Poell, da Universidade de Amsterdã.
E eles têm um livro chamado Platforms and Cultural Production, em que justamente, na visão deles, vão falar de… Eles vão fazer uma divisão, que eu não necessariamente tenho o total acordo, mas vão fazer uma divisão entre dimensões institucionais das plataformas em relação ao que se chama de produção cultural, jornalismo, games, música, enfim, YouTube, influências e tal. As dimensões institucionais, na visão deles, são mercado, governança e infraestrutura, enquanto a dimensão mais culturais são trabalho, identidade, acho que eles põem criatividade e questões democráticas, acho que são esses os pontos que entram. Eu não, eu tento ir além de uma posição institucionalista, porque acho que justamente… Porque você vem com uma perspectiva de estudos culturais e que vai pensar como que as questões de identidade, de ponto de trabalho, de fandom, eu tenho trabalhos anteriores sobre fandom também, a cultura de fãs online, como isso faz com que, especialmente a cultura digital brasileira, tenha também especificidades, porque você pega o número de likes e comentários na página do Oscar de todos os indicados e de quando é a Fernanda Torres que tem um post sobre ela.
Tem algo específico, por exemplo, aqui no Canadá as pessoas não têm nenhum tipo de relação próxima ao que a gente tem com o Instagram, por exemplo. São muito mais minimalistas, muito mais, e até essa questão de uma celebritização, parece que esse fenômeno ligado à celebritização é muito mais forte em países como o Brasil, não posso dizer sobre outros ao redor do mundo,sei lá, a China e tal, mas comparado ao Canadá, certamente.
Então, pensar em como as identidades são construídas nas plataformas, pensar uma série de estudos entre plataformas que vão pensar como as identidades LGBTs vão sendo reapropriadas em contexto de plataforma ou vão se espalhando, ou mesmo dessa luta por sentidos também em relação às identidades.
Por exemplo, ano passado aconteceu, e isso se dá muitas vezes pela questão das controvérsias, né, das redes mesmo. Por exemplo, ano passado, quando aconteceu a polêmica em torno do termo boyceta, que foi e aparece como uma entrevista ao podcast Entre Amigues, e que isso vai circulando e chega na extrema direita e começa a replicar o vídeo em termos de debate. Então, se você for pensar também as plataformas como terreno, não só de demarcação de identidades, mas também de disputas por identidade, de lutas por identidade, é algo que nem sempre estão nas minhas pesquisas, mas estão sempre na minha sala de aula.
É algo que a gente… Se a gente for pensar a própria cultura de memes que precede esse atual momento das plataformas, que eu acho que a cultura de memes tem um certo histórico, até antes do YouTube, quando o YouTube surge. O YouTube, aliás, faz 20 anos esse ano, e depois, enfim, quando vai tendo os memes de imagem, até enfim como isso vai… Isso também é pensar as identidades nas redes. E esse texto específico, a questão que nos mobilizava, eu acho que a gente tentou olhar de uma maneira bem generosa, é o que significa uma identidade marxista em meio às plataformas.
E esse struggling com dois sentidos, de lutando com as plataformas, de lutando tanto no sentido de luta de classes como lutando com a própria lógica das plataformas. É como você está falando, de lutar com as dimensões institucionais das plataformas, especialmente com governança e um próprio modelo de negócio. E aí a gente preferiu seguir as dimensões dos nossos colegas, do Thomas Poell, do David Nieborg, da Brooke Erin Duffy, porque essa dimensão é pra gente uma questão dialética mesmo, quer dizer, a gente fala o tempo todo como uma corda que é cercada de contradições que muitas vezes não se resolvem.
E como se passa a dar conta sobre isso, né? Sobre… Ok, esse é um lugar de visibilidade, isso vários estudos de creators falam, sobre essa espécie de uma gestão da visibilidade e de uma extrema visibilidade. E essa visibilidade, esse trabalho de visibilidade, é necessário para você conseguir se posicionar para conseguir alguma grana como creator ou conseguir circular e ter seu trabalho visível? Tem um peso dessa visibilidade que se dá especialmente em termos de gênero e raça, ou seja, pessoas racializadas, pessoas generificadas, pessoas LGBTQIA+ mulheres, pessoas negras, que tem mais possibilidade de sofrer com a extrema visibilidade, ou seja, de passar a sofrer hate, de, enfim, todo o tipo de violência que vem também dessa visibilidade. E aí, até em algum momento do processo de parecer dos textos, onde parecia isso uma vez, nossa, mas o que esses youtubers socialistas ou marxistas estão vivendo no Brasil não são muito diferentes de outras… De fato, o poder das plataformas não é uma coisa que vai atingir só algo muito particular.
Talvez tenha algo particular no modo como eles vão passando a se entender. E a gente conecta isso com uma tradição da produção cultural marxista antes das plataformas. Lógico que antes de você ter o controle desses próprios…
Qual a diferença entre você produzir um panfleto na frente de uma fábrica e produzir um zine, antes tal, e você fazer isso nas plataformas? A gente ressalta um certo caráter pedagógico que está e que perpassa mesmo com todos esses strugglings.
Esse struggling que a gente coloca é um limitador de todas as lutas sociais, na verdade, né
Mas que tem algo que, obviamente, com limites, que hora vai tensionando, hora volta, e tem um pouco… É um pouco o que a gente tenta mostrar com esse texto, de uma visão que evita dizer ou se isso é bom ou ruim, pelo contrário, que essas coisas estão muito intrincadas. E a segunda pergunta você falou qual que é mesmo ?
Píi: A segunda pergunta era complementar, acho que já foi meio que respondido, que era um pouco o quanto que essas identidades jogavam enquanto formas de resistência, enfim, operavam numa lógica ao contrário, e o quanto que acabavam sendo constrangidas pela lógica das plataformas, que acho que entra bastante nessa própria questão até de lutar com as próprias regras da plataforma, para tentar ter visibilidade, enfim, ser uma forma de trabalho viável, etc.
Rafael: Exato. Tem um livro que eu gosto muito do Tiziano Bonini and Emiliano Treré chamado Algoritmos da Resistência. Em vez de ser do algoritmo da opressão, o algoritmo da resistência vai pensando nas táticas.
E aí, a gente vai vendo, tanto como trabalhadores vão se apropriando, naquele texto também do Platform Scams, a gente mostra muito isso. Eu acho que tem algo que une o Struggling with Platforms com o Platform Scams, que é esse duplo movimento de gato e rato, que no fundo o que tá se passando, você tem o poder das plataformas e você tem as táticas das pessoas tentando driblar esse poder das plataformas.
Essas coisas vão atuando juntas. Não é uma coisa de uma disputa igual, que são expressões de luta de classe, mas acho que, lendo juntos esses dois textos, se eu fosse dar uma aula sobre esses dois textos juntos, eu diria que o que une é de não pensar o poder das plataformas como totalizante e também não correr o risco contrário de pensar que essas pessoas que estão construindo as táticas de baixo não estão enfrentando o poder das plataformas de uma maneira dialética.
Yasmin: Muito legal, Rafael. Ainda sobre esse artigo, você aborda a comercialização da imagem de produtores culturais, os influencers, assim como da comercialização da confiança da audiência no produtor e suas produções. As plataformas comerciais, no fim das contas, precisam validar e proteger a identidade de seus usuários. A resposta de Sam Altman para estabelecer a confiança online entre as partes na rede parece ser o aplicativo, esse anunciado World, que pretende criar uma identidade global a partir da coleta da íris de cada pessoa para provar que ela é um ser humano e não um robô. Como você enxerga essa iniciativa, a possibilidade de um serviço pago e, de modo geral, a comercialização de biometria e da validação da identidade?
Rafael: Esse tema não foi algo que eu tenha estudado, assim, então eu acho que já tem um debate público forte sobre isso, ou pensar em gente como o Tarcízio Silva, Sérgio Amadeu, Rafael Zanatta, gente que tem estudado isso, acho que no Brasil foi muito falado sobre isso.
Dá uma impressão de Black Mirror, né, a primeira coisa, parece que aquilo estava por lá. Acho que tem uma percepção das pessoas com os dados, acho que, no fundo, talvez essa seja uma contribuição, que provavelmente está sendo dita, mas que, além de todas as problemáticas que as pessoas já disseram, tem a ver com como as pessoas enxergam os dados delas como nada. E eu não sei se isso se resolve com data literacy.
E vou explicar por quê.
As pessoas… O exemplo que eu dou sempre, que é até um exemplo mais antigo, de quando tinha, sei lá, no próprio Facebook, testes… No Instagram, menos. No Facebook, testes assim, saiba com qual celebridade você mais se parece.
Mesmo no Instagram, teve vários desses. Saiba como você é daqui a 20 anos, coisa e tal. Claramente, é algo para coleta de dados e para pegar seus dados.
Porque eu acho que talvez data literacy não resolve. Tem gente que foi isso só pela brincadeira. Tem gente que falou assim, eu sei que isso vai pegar meus dados, eu sei que, conscientemente que, isso acontece.
E eu prefiro não saber com qual celebridade eu me pareço, porque meus dados já estão aí mesmo. O que vai fazer a diferença um a mais um a menos? Então, você tem uma percepção geral de que os dados já não pertencem a elas mesmas. Então, o que vai ter de mal nisso? Eu falei na outra parte da entrevista que a dataficação, e dataficação é mais perene do que a plataformização.
É uma aposta, né. E a dataficação é muito parceira da financeirização, sei lá. Na verdade, ela nasce dessa imbricação dos dados como forma de capital, como diz o Jathan Sadowski e todo o trabalho fenomenal que o Edemilson Paraná tem feito nessas relações entre tecnologias e finanças, seja com bitcoin, seja com a questão da IA, mostra que essas coisas são o que realmente está junto.
Então, no caso da íris das pessoas isso vai sendo extrapolado. Acho que essa poderia ser a minha contribuição.
Píi: Bom, existe um debate sobre se as atividades de usuários de redes sociais são exploradas como fonte de lucro pelas empresas de plataforma na economia de dados, que também é contraposto com a perspectiva de que não se trataria exatamente de trabalho, tampouco de lucro, mas sim de um rentismo de plataformas que se apropria do lucro de outros setores.
Em seu artigo Free Labor and Data Labor in the Digital Economy, publicado em agosto do ano passado, você propõe mudar o foco da extração de dados de usuários para o data work, trabalho de dados no preparo dos dados, o ingrediente secreto dos algoritmos. Você poderia falar mais sobre esse trabalho de dados e de suas tarefas não pagas ou mal pagas?
Rafael: Sim, eu acho que tem uma das funções que a gente tem ao fazer pesquisa, eu falei um pouco disso da outra vez também, é não perder um pouco o fio histórico das discussões. Quando começa a discussão sobre digital labor ou sobre essa nomenclatura, digital labor, a gente começa com um texto da italiana Tiziana Terranova em 2000, chamado Free Labor, e que antes das redes sociais, ela vai falar de um trabalho gratuito, não pago, na internet, e depois isso se adensa especialmente com os diálogos críticos entre Christian Fuchs e César Bolaño, que é um pesquisador brasileiro, e que vão discutir nos termos marxistas o que significa essa noção.
Tem muitos pesquisadores brasileiros que se envolveram nesse debate, Marcos Dantas, o Rodrigo Moreno Marques, e na minha tese de doutorado, que é de 2016, já quase dez anos, eu suma, eu sintetizava esse debate e senti nesse debate e mostro como em termos marxistas não é efetivamente nem trabalho, nem exploração, porque o mercado de dados funciona, a questão está no banco de dados agregado e não você postando na rede social, não é isso que faz tanto a questão da exploração, quanto a questão do labor envolvido.
Atualmente, essa discussão está mais na linha de uma dataficação do trabalho, né, e especialmente de maneira especializada nas cadeias de valor de IA, ou seja, o que a gente já chamou no passado de microtrabalho ou de outras coisas, que é o trabalho necessário para alimentar ou treinar ou anotar dados para a inteligência artificial. Aqui no isso a gente chama de data work, ou seja, todo esse trabalho que é necessário para alimentar, treinar dados para a inteligência artificial, que envolve anotação, verificação, moderação, envolve você realmente ajudar a simular veículos sem motorista e por aí vai.
Isso tem sido muito pesquisado ao redor do mundo. Recentemente, dois livros foram lançados sobre isso, um do Antônio Casilli, que esteve aqui ontem, e o livro se chama Waiting for Robots, e os colegas nossos da Inglaterra, o Mark Graham, o James Muldoon e o Callum Cant, o livro Feeding the Machine. No Brasil, os primeiros a pesquisar esses trabalhadores brasileiros foram o Renan Kalil, na verdade, o doutorado dele foi sobre motoristas de Uber Eats e trabalhadores da Amazon Mechanical Turk, e meus colegas Gabriel Pereira, Bruno Moreschi e Fabio Cozman, no texto sobre os brasileiros que trabalham na Amazon Mechanical Turk.
Depois eu e o William Araujo pesquisamos isso, depois também continuei a parte da pesquisa com as pessoas que trabalham no chamado Fazenda de Clique, que é o tipo específico de data worker, de trabalho de dados. O Matheus Viana Braz tem sido uma das pessoas que mais tem pesquisado isso no Brasil, o Jonas Valente também, cuidando do Fairwork AI, o Fairwork Cloudwork, que tem pesquisado essa questão do data work também. Então o Brasil tem tido uma rede importante de pesquisadores nessa área.
Aqui eu destacarei também de quem pesquisou em termos latino-americanos, o Julian Posada, Milagros Miceli, que também tem coordenado o projeto Data Workers Inquiry, uma enquete operária de trabalhadores de dados, e que mostra que eles são uma chave importantíssima na cadeia de valor nas redes globais de produção da inteligência artificial. Isso ficou mais evidente quando o chat GPT foi, começou e descobriram que trabalhadores quenianos estavam ganhando 2 dólares por hora. Para receber isso, o Fairwork fez uma análise da empresa, que era terceirizada no Quênia, responsável por treinarr os dados para o chat GPT, que se chama Sama.
Está no ar esse relatório. Eu atuei como na parte de revisão do relatório. E agora o Antonio Casilli está lançando um documentário chamado In the Belly of AI, que vai mostrando isso ao redor do mundo.
Tem um filme mais antigo, de 2019, chamado The Cleaners, que vai mostrar, especialmente nas Filipinas, como esse trabalho acontece. E isso tem gerado uma série… A gente teve um tempo, ou durante, diria-se de 2018 a 2019, até um, dois anos atrás, a gente estava muito tentando entender quem eram esses trabalhadores, que no Brasil têm um caráter de gênero muito marcado, assim, . Na América Latina, a pesquisa do Julián Posada mostra isso.
A gente traduziu um texto do Julián há uns anos sobre as famílias que treinam e IA juntam na Venezuela, na Colômbia. E no Brasil, muito forte, a questão de mulheres que treinam dados para AI. Então, às vezes, até os filhos descobrem canal no YouTube, “ganhando renda extra”, não sei o quê.
Então, a gente passou um tempo verificando cada um dos países, quais eram as condições de trabalho, quem eram essas pessoas, o que elas faziam e tal. E agora a gente está começando a entrar numa fase de conectar mais os nós. Ou seja, o que tem a ver o Brasil com o Quênia? Para onde esse fluxo vai? Porque a gente tem até uma fala que usei no Intercept, que fez uma série de reportagens muito boa, coordenada pela Tatiana Dias, a partir de um prêmio Pulitzer, sobre isso.
Ela chegou a usar o exemplo que tá na pesquisa do Matheus Viana Braz, sobre os treinadores de dados para aspirador de pó inteligente, que você tem que tirar foto de cocô de cachorro para poder… E aí, é exatamente, essa dataficação é total.
Na minha pesquisa, eu já achei coisas que eram do tipo grave vídeo dançando com seu cabelo chacoalhando, porque claro que tem instruções aí que são de gênero e raça, o que significa um cabelo chacoalhando e como que isso é validado em termos dessa dança. É feito também para bancos de dados da area de Saúde e tal.
Tem um pouco de tudo. E agora a gente está começando a conectar mais o que tem a ver. O próprio jornalismo, para mim, tem feito algo que às vezes a pesquisa demora mais.
O Intercept 2021, a partir da matéria do Paulo Victor Ribeiro, fez uma reportagem mostrando como a ByteDance contratou uma empresa. Eu não lembro de qual país, vou chutar Paquistão, mas depois vocês confiram para ver isso, porque eu não tenho certeza do Paquistão. Mas pode ser China ou outro país, e esse outro país contratava brasileiros para transcrever vídeos para o TikTok.
Então, você tem uma cadeia que nem sempre é linear. Ou de brasileiros, agora está vindo muito forte as matérias sobre crianças e adolescentes que vão ganhando dinheiro no TikTok, no Roblox. Você tem no caso do TikTok do Kwai, algo que envolve o Brasil e China e que nem necessariamente vai passar pelas Big Tech dos Estados Unidos.
O que a gente sabe exatamente disso? Eu acho que esse é um dos desafios. E isso só com pesquisa realmente internacionais, transnacionais, para você conseguir mapear o que uma coisa tem a ver com a outra. No Quênia, foi lançado primeiro o Sindicato de Trabalhadores de Dados.
É algo que, em termos legislativos, de regulação, é algo difícil de aparecer. Eu falei isso, inclusive, para o ministro do Trabalho no passado, que os trabalhadores de dados para IA não estão em termos de regulação… Eu falei isso muitas vezes para O GLOBO também,
Estão invisíveis em termos de regulação, tanto na regulação do trabalho por plataformas quanto na regulação de IA, ou mesmo nas legislações que envolvem dados. E como isso se passa como se nada tivesse a ver com eles ou com isso. E, de fato, agora está uma pressão forte para a regulação europeia considerar, considerar o que esses trabalhadores de dados fazem como parte mesmo da accountability da cadeia de valor de IA.
Em termos teóricos, isso tem feito reviver o quanto que isso é a intensificação do capitalismo dependente. Ou seja, de se pensar tanto em teorias do imperialismo, de desenvolvimento desigual combinado, quanto na teoria marxista da dependência, em termos de superexploração do trabalho.
Para mim, tem uma questão interessante como pesquisador de comunicação, que é o fato de que, hoje em dia, tudo o que a gente imaginava que era empresa de comunicação, elas quase não existem mais.
É sei lá, pensar que a Editora Abril antes de um prédio inteiro ali perto da Marginal Pinheiros, “ali” como se eu estivesse aqui, aí em São Paulo. E sumiu. O que significa comunicação hoje é também reconfigurado por essas cadeias de valor de IA.
As próprias indústrias de comunicação, quando eu falo de China, Paquistão, Brasil, essa cadeia do TikTok, isso é a indústria da comunicação hoje. E que a gente um pouco tem conseguido trackear. Eu acho que esse é um dos principais desafios dessa área e pensando nas pesquisas daqui para frente sobre data work.
Tem o mapear as cadeias como um dos desafios e como a gente pensa isso teoricamente em termos de geografia, de geopolítica, e como a gente enfrenta isso também, porque nenhuma regulação local vai dar conta de resolver essas disparidades globais em termos de quem está demandando esses dados, de quem está fazendo o trabalho para treinar esses dados.
O segundo é como esse data work tem aparecido de maneira que não é somente esse tradicional, tradicional de alimentar IA, que vai aparecendo outros elementos, como as próprias fazendas de clique ou de falsa inteligência artificial, e também no setor cultural de maneira mais ampla, com a própria IA Generativa, como isso tem sido motivo de preocupação em termos dessa continuidade da datificação, de sumirem, ou de sumirem ou de quanto de barganha é necessário para isso. Por exemplo, o quanto um acordo de atores em Hollywood pode acabar prejudicando dubladores no Brasil ou em outros países, ou de uma plataforma de streaming, ou isso está muito no cenário de games, na verdade.
Os estúdios de games estão dizendo que eu não preciso mais de um game performer, que eram antes as pessoas que estão naqueles estúdios com chroma key emulando o corpo de como seria o personagem do game. Eu não preciso mais disso porque eu já tenho dados suficientes para montar isso sem a participação humana. E ai, só que ninguém permitiu, como no caso da Íris, que se usasse aqueles dados para outros fins.
Ou se uma plataforma de streaming falasse que ia pegar os roteiros das séries mais premiadas e vou fazer um novo roteiro, que é o que demandou a própria greve dos roteiristas de Hollywood, depois da greve dos atores de Hollywood e tal, que está também numa fronteira do data work, numa outra perspectiva, numa outra dimensão, mas também uma forma de data work. Outras dimensões, outros desafios, como é que os sindicatos vão, não só as centrais sindicatos, por um lado as centrais sindicatos tradicionais, como vão enfrentar essa questão do data work em vários setores e, por outro, se vão surgindo coletividades específicas de data work, como vai surgindo no Quênia. Por fim, e temos alternativas ao data work também, que sejam baseadas em data commons, por exemplo.
Ano passado, a Joana Varon, a Timnit Gebru, eu acho que mais alguém, publicaram no G20, no T20, na verdade, um paper sobre a questão do AI commons e data commons como perspectivas da IA para o bem comum, que tem a ver com uma ideia de não comercialização dos dados e tal, de uma outra perspectiva, de se pensar os dados e a IA. E as próprias cooperativas de trabalhadores de dados, como isso tem aparecido também, são perguntas que ficam no ar para os próximos tempos.
Píi: Bom, aí agora, pensando um pouco as perspectivas futuras sobre os estudos com inteligência artificial, enfim, a própria inteligência artificial, gostaria de perguntar sobre a questão recente do Mark Zuckerberg e a própria questão do governo Trump mais focada nesse tema das big techs, mas, enfim, recentemente rolou o anúncio das mudanças sobre as regras de moderação de conteúdo, diferentes setas custo de ódio, conteúdos políticos e fact-check nas plataformas da Meta.
Qual a sua avaliação quanto ao papel do trabalho invisibilizado dos moderadores de plataforma? Como esse papel difere na divisão internacional do trabalho e no funcionamento das plataformas dos diferentes países? E qual o papel desses trabalhadores no caso específico da moderação e treinamento da inteligência artificial generativa? E, de modo geral, acho que até pensar um pouco como dá para pensar nessas políticas de governança das redes.
Rafael: Eu te dividiria essa resposta em duas. Uma em relação ao trabalho de moderação, não separaria de um jeito ao outro, porque o trabalho de moderação é o trabalho de data worker.
O que aconteceu durante muito tempo, e tem algo que acontece, o Trump também sabe mais do que eu, que especialmente think tanks ao redor do mundo, uma começa a usar uma palavra e todas as outras vão usando, e aquilo vai quase como contágio e todo mundo vai falando a mesma coisa.
Um exemplo que eu dou, na questão da regulação das redes sociais, falava muito de dever de cuidado. Essa palavra, não importava o contexto em que ela surgia, tinha dever de cuidado como parte obrigatória do vocabulário de alguém que ia defender a regulação das redes sociais, como quase assim uma cartilha, né.
A gente publicou ano passado um relatório chamado Feito Sob Medida, com o Jonathan Corpus Ong, do Universidade de Massachusetts, Amherst, como líder, e a gente fala isso, não tem, já vou voltar à moderação, mas não tem como ter uma resposta universal que não seja ligada aos contextos locais de onde acontece, mesmo em termos de vocabulário, não vai tentar forçar em determinada realidade. E com essa questão do dever de cuidado, na questão da moderação, foi interessante, eu estava dando uma aula na Pós, aqui em Toronto, em 2023, e eu pedi para cada aluno trazer uma police de lugar de um país diferente, lugar diferente em relação à regulação de redes sociais. E a gente conseguiu identificar que não importasse o país, tinha quase uma gramática de como você deveria fazer isso.
Isso assim, na hora. E eu tinha pedido para uma pessoa muito importante no Brasil, que não vou nomear por motivos óbvios, mandar uma pergunta para os meus alunos sobre regulação de redes sociais. É uma pessoa que circula, não é uma pessoa acadêmica, não.
E essa pessoa mandou a pergunta só no intervalo da aula, e eu não ouvi, mandou no WhatsApp. Eu coloquei para a turma sem eu ter ouvido antes. Cara, essa pessoa repetiu exatamente as mesmas palavras, dever de cuidado, não sei o quê, não sei o que lá.
E o que eu quero dizer com isso? Um, que é uma falta de criatividade tremenda. Mas e dois, que há muito tempo a questão da moderação foi endereçada em todos esses manuais como uma questão de linguagem e como uma questão de governança. E o trabalho por trás de moderação de conteúdo sempre foi, nesse circuito, relegado a segundo plano.
Mesmo em debates que eu tive, é como se fosse uma outra coisa, sendo que, em termos de pesquisa, você já tinha elementos suficientes para conectar que essa governança tem essa indústria da moderação do data work por trás. Então, eu acho que é mais a questão dos think tanks com as suas agendas dominantes que acham que estão fazendo um grande barulho e são muito articulados. Elas são articuladas, elas são de fato.
Mas delas pensarem além da própria cartilha que elas ficam repetindo. Porque você já tem isso como você conecta no data work e tem aí uma divisão internacional do trabalho forte. Uma parte dos moderadores estão nas Filipinas.
Você tem outros países do mundo também, mas as Filipinas ainda é um grande lugar terceirizado para a moderação. Esse filme, The Cleaners, é muito bom, se vocês chegaram, chegaram já a ver esse filme? Podia fazer uma exibição. É um filme co-produzido por Alemanha e Brasil.
Tem uma cena que uma ex-diretora do Google fala quando o Saddam Hussein morreu, saíram vários vídeos, vazaram vários vídeos dele sendo enforcados. E a gente teve que decidir se a gente ia deletar os vídeos ou não. E elas falam que a própria decisão sobre manter um vídeo, que eles consideram como registro histórico daquilo, e os outros não, elas falam “hoje pensando isso foi puro fruto do acaso de um casuísmo, não é algo que tinha uma política por trás”.
Ou mesmo esses trabalhadores que têm que lidar com, no mínimo, 1.500 fotos e vídeos todos os dias. Em 2020, o Facebook foi obrigado a pagar mais de 20 milhões de dólares para esses trabalhadores que estavam sofrendo de estresse pós-traumático. Ou seja, a gente está falando mesmo de custos, das redes, em termos globais e dos dados e da própria IA, que se sabe muito pela pesquisa, pelo jornalismo, mas que, nos esforços regulatórios, isso, embora as pessoas saibam disso, não tem tido força, do tipo de força, dos vários tipos de força, inclusive política, para poder lidar com essa questão.
Em relação às mudanças da Meta e do próprio alinhamento com o Trump, é muito interessante como uma faceta que nem sempre estava muito evidente ficou mais evidente que é a dimensão de gênero. Sempre se falou dos tech bros, mas pensar no tech bros, os homens brancos do Vale do Silício, isso está muito no trabalho da Coding Rights, no projeto cartografia da internet. Tem um texto que eu trabalho com os alunos já há muito tempo, um livro que é sobre os patriarcas das redes.
Então você tem essa dimensão de gênero e dos próprios tech bros já marcada há algum tempo. Mas o que fica muito evidente é a coalizão gênero e classe. Obviamente, enfim, tudo gênero, raça e classe, mas, mas como essa masculinidade branca dos ricos vai aparecer de forma muito presente.
Então o Mark Zuckerberg começa a fazer malhação, o Elon Musk também, a questão do corpo dos tech bros como algo que vai marcando também como se fosse, uma, essa visibilização das afinidades com o Trump. E disso, deixar, o primeiro governo do Trump era quase uma coisa que estava meio escondida, uma coisa quase vergonhosa, porque, nossa, ok, desculpa se a gente ajudou a disseminar desinformação, vamos nos penalizar por isso, vamos criar fundações para combater desinformação e tal, e agora você tem esse alinhamento completo. Inclusive quando saiu o filme The Cleaners, saiu logo um pouco depois do Dilema das Redes.
E eu sempre encarei o Dilema das Redes como as lágrimas dos tech bros também. Ali eram os tech bros arrependidos, você só ouve a visão dos homens brancos arrependidos dizendo que eles não vão fazer isso de novo e que a gente e que eles têm a nova solução para não dar errado de novo. No fundo o Dilema das Redes é isso.
E agora eu acho que isso fica muito evidente e de que, ou de que alternativas às big tech passam pelo enfrentamento das múltiplas formas de opressão. Ou seja, a opressão realmente é repensar tecnologias de pontos de vista interseccionais, de gênero, raça e classe, porque ou você enfrenta tudo ou nada, né, porque é realmente cada vez mais necessário de se pensar a tecnologia do ponto de vista de gênero, raça e classe da América Latina. O que fica evidente nas big tech são realmente uma síntese do que significa, do que significa essa complexa rede de poder.
Yasmin: Rafael, a gente tem mais uns minutinhos. Você poderia comentar um pouco sobre esse seu novo livro que você está escrevendo e se você teria considerações finais quanto às perspectivas para o trabalho de plataforma, os impactos da inteligência artificial na sociedade e o papel da produção científica nesse horizonte?
Rafael: Posso. Estou escrevendo um livro sobre fracasso e aprendizado. Devo sair daqui a um ano e meio, mais ou menos, e, na verdade, a grande ideia é questionar o que significa sucesso ou fracasso.
O breque dos apps, deu certo ou não deu certo? A cooperativa de Araraquara, deu certo ou não deu certo? Eu, talvez essa seja a conclusão teórica do livro que vem aí, que é o que significa pensar sucesso ou fracasso do ponto de vista anticapitalista.
Esse talvez seja um dos livros, das obras – estou tentando limpar a minha mesa para sentar nisso com tempo – por que, do que tenho conseguido articular, talvez seja, em nível teórico, o texto mais doido que escrevi na vida. Porque tem coisa de marxismo, tem coisa de teoria queer.
É pela primeira vez que vou mergulhar na teoria queer para falar da noção de fracasso queer. E que essa noção de fracasso queer, é, ajuda a gente a pensar nos noções de sucesso e fracasso, que é o fracasso do ponto de vista anticapitalista. E eu abro o livro com o Instituto do Fracasso.
Os tech bros do Vale do Silício criaram o Failure Institute para eles compartilharem as iniciativas e startups deles que quebraram. Eles, o lema deles é fail more, fail faster, fail better. Ou seja, falhe o fracasso mais, melhor e mais rápido.
E a minha questão é o que significa para a classe trabalhadora que é atormentada pelo fantasma do fracasso que não tem uma outra alternativa de… Ah, minha startup fracassou, vou começar do zero, eu vou investir 30 milhões e vou… E aí a grande questão é o que significa pensar o fracasso no sentido anticapitalista e a luta de classe é completamente diferente de fail more, fail faster, fail better.
No sentido também e aí significa pensar o que a gente aprende com as iniciativas que são sempre tortuosas, que não são lineares ou como às vezes a gente, mesmo na esquerda, a gente quer ver uma alternativa que seja exatamente linear e que a gente vai cumprir usando também a coisa do Struggles nessas duas dimensões que aparecem no Struggling with Platforms, que é o Struggles também como uma forma de resistência mas como uma forma de… Então, o livro que estou escrevendo sobre isso, eu tenho o tema já do meu próximo livro depois desse e esse eu posso falar, um pouco que vai ter vai ter um corte histórico mas vai ser sobre Mulheres Consultoras de IA.
E vai ser um livro que vai envolver mais histórias de vida e o que significa isso ou essa atividade em um país como o Brasil.
Isso é o que eu faço no momento, porque eu estou começando as pesquisas sobre.
Píi: É muito massa ouvir, assim, a gente agradece bastante pela entrevista nas duas partes.
Rafael: Tranquilo. Obrigado a vocês pela paciência tanto da nevasca, hoje, que eu esqueci que eu preciso comer senão eu não vou conseguir sobreviver o dia.
Yasmin: Muito obrigada, Rafael. Estou ansiosa pelos livros.
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