A Vida da IA: Trabalho Humano, Dados e Recursos Planetários
A palestra inaugural do Prêmio Pierre Verger (2022), ministrada pelo antropólogo Tim Ingold, trouxe à tona uma perspectiva intrigante sobre o futuro durante o evento. Ingold provocou uma reflexão sobre o destino incerto da revolução digital, prevendo sua possível autodestruição neste ou no próximo século. Sua visão é embasada na preocupante incapacidade do nosso mundo em sustentar as crescentes demandas energéticas e a extração de metais pesados tóxicos necessários para os dispositivos digitais.
Embora Ingold adote um tom pessimista em relação às tecnologias, não podemos negligenciar os desafios associados à exploração de recursos planetários e à utilização do trabalho humano em várias esferas da sociedade, que sustentam a produção, distribuição, consumo e descarte dos produtos eletrônicos.
Entretanto, é indiscutível que tecnologias como a Inteligência Artificial (IA) surgiram como resultado da colaboração entre forças humanas e não-humanas. Independentemente da trajetória futura da IA, seu papel nas complexas interações entre ciência, tecnologia, política, economia, direito e ficção não pode ser subestimado. A IA está redefinindo nossas concepções de cultura e natureza, emergindo como um elemento vital nesse cenário em constante evolução.
A análise de Ingold, embora não centrada na tecnologia, é relevante quando consideramos o potencial transformador das interações entre humanos e não-humanos. Sua abordagem (Ingold, 2015) ressoa com a concepção de "objetos técnicos" de Latour (1999), preferencialmente denominados "coisas", que desempenham um papel crucial em redes sociotécnicas complexas. Essas "coisas", longe de serem inertes, são agentes ativos nas relações que moldam nossa realidade, influenciando e sendo influenciadas pelo conhecimento humano.
Kate Crawford (2021a), por exemplo, renomada pesquisadora de IA, explora o impacto dos recursos naturais e do trabalho humano no aprendizado de máquina, além dos estereótipos regressivos presentes nos algoritmos, como discutido em seu livro "Atlas of AI" (2021b). Crawford enfatiza que a IA não é apenas abstrata, mas também traz consigo custos ambientais e humanos significativos. Ela destaca como os sistemas de IA são construídos a partir de recursos naturais e trabalho humano, desafiando a ideia de que são autônomos e inteligentes por si mesmos.
A questão do viés nos algoritmos de IA é abordada por Crawford, que argumenta que a mera adição de dados não é suficiente para resolver o problema. Ela explora as lógicas subjacentes de classificação, que muitas vezes levam à discriminação, não apenas na aplicação dos sistemas, mas também na sua formação. O exemplo do conjunto de dados ImageNet é destacado para ilustrar essas implicações negativas.
Crawford também critica o uso da IA para o reconhecimento de emoções, destacando a falha na ideia de interpretar emoções a partir de expressões faciais. A necessidade de regulamentações mais rigorosas e de uma maior responsabilidade na construção de conjuntos de dados de treinamento é ressaltada, bem como a importância de diversificar as vozes nos debates sobre IA. O progresso na regulamentação da IA na União Europeia e na Austrália é mencionado como um sinal positivo, e é enfatizada a importância de permitir que os pesquisadores da indústria tenham a liberdade de publicar sem interferência corporativa.
As reflexões de Kate Crawford reforçam a ideia de que estamos lidando com um conhecimento enraizado no extrativismo. Esse extrativismo permeia profundamente a biosfera e a esfera afetiva e cognitiva humana, dando origem ao conceito de "extrativismo do conhecimento". O "big data", gerado pela digitalização em massa da Internet e pelo crescimento de centros de dados, tornou-se a base para a IA, alimentada por microprocessadores poderosos e algoritmos de compressão de dados. Essa riqueza de dados abertos possibilitou a análise e interpretação de diversos aspectos do comportamento humano, impactando nossa percepção e compreensão da sociedade (PASQUINELLI & JOLER, 2020).
Nesse contexto, a IA não deve ser reduzida a meros componentes técnicos. Ainda que partindo de perspectivas distintas, as abordagens de Bruno Latour e Tim Ingold destacam a necessidade de compreender a IA como parte de uma rede complexa de interações entre elementos humanos e não-humanos. Como cientistas sociais, nossa tarefa é decifrar essas conexões, examinando como entidades e ações se entrelaçam e compartilham papéis. Isso nos permite explorar uma visão mais completa da "natureza-cultura", incorporando elementos variados como aspectos naturais, artificiais, científicos, políticos e sociais.
Em resumo, a IA desempenha um papel crucial na interseção entre pessoas e coisas, desafiando noções tradicionais e moldando nossa percepção do mundo. Ao contemplar as complexidades da IA e suas implicações, somos chamados a examinar os aspectos profundos da coexistência entre humanos e não-humanos, enquanto participamos de uma rede de conhecimento dinâmico que redefine nossa compreensão da realidade.
Referências:
CRAWFORD, Kate. Microsoft 's Kate Crawford: 'AI is neither artificial nor intelligent'. Entrevista concedida à Zoë Corbyn. The Guardian, 6 de junho de 2021a. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2021/jun/06/microsofts-kate-crawford-ai-is-neither-artificial-nor-intelligent
CRAWFORD, Kate. Atlas of IA: Power, Politics, and the Planetary Costs of Artificial Intelligence. Yale University Press, 2021b.
INGOLD, Tim. Conferência de Abertura: Beyond writing and drawing: In praise of scribble. YouTube, 22 de ago. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iVUSbKAEGE0
INGOLD, Tim. "Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais". Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 2012. n. 37, p. 25-44, jan./jun.
INGOLD, Tim. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Editora 34: Rio de Janeiro, 1994.
LATOUR, B."On recalling ANT". In: LAW, J.; HASSARD, J. (Ed.). Actor network theory and after. Oxford: Blackwell, 1999. p. 15-25.
PASQUINELLI, Matteo; JOLER, Vladan. 2020. “O manifesto Nooscópio: Inteligência Artificial como Instrumento de Extrativismo do Conhecimento”, [Trad. Leandro Módolo & Thais Pimentel] KIM research group (Karlsruhe University of Arts and Design) e Share Lab (Novi Sad), 1 de Maio.