
O “Vestiário Masculino” Digital: A Manosfera e a Escalada da Violência Online.
Enquadrando a Manosfera
Em março de 2025 a plataforma de streaming Netflix lançou a minissérie intitulada “Adolescência”. A trama retrata o drama sofrido por diversos membros de uma comunidade, após um jovem de 13 anos assassinar brutalmente uma colega de escola. Entre outros aspectos, um dos pontos fundamentais da minissérie são os movimentos de supremacia masculina na internet e sua influência em crimes de violência extrema — feminicídio, no caso da obra. Dado o sucesso estrondoso da produção, o debate público se centrou especialmente nesses grupos online, que formam uma rede complexa de sociabilidade digital: a manosfera.
A manosfera é uma cibercultura proveniente dos Men´s Right Movements (MRM) — ou masculinismo — que se constituem a partir da subversão dos movimentos de liberação masculina dos anos 80 nos Estados Unidos. São compostos por websites, blogs, fóruns de discussão, canais, podcasts e páginas que discutem papéis de gênero, masculinidades, política e relacionamentos. A manosfera constrói seu ativismo digital a partir dos anos 90, criando um ambiente virtual correspondente a “vestiários masculinos”: espaços de socialização entre homens, em que eles dizem tudo aquilo que seria moralmente repreensível fora dele (Bárbara, 2018, p.502). Diferente dos MRM offline, a manosfera é um espaço heterogêneo sem centralidade institucional, o que dá protagonismo às perspectivas individuais dos homens que a integram. Somado a isso, o espaço digital estimula redes de contato maiores, já que as plataformas digitais podem agrupar milhares de homens de diversos lugares, proporcionando um crescimento mais acentuado dessas comunidades (Ging, 2019; Lilly, 2016).
Mesmo que possa parecer um grupo relativamente homogêneo, é importante ressaltar que a manosfera é composta por diversos subgrupos com posicionamentos e filosofias distintas. De toda forma, a tese central que une os diversos segmentos da manosfera é a crença de que a sociedade ocidental é profundamente misândrica — propaga ódio e preconceito contra homens e meninos —, prejudicando os homens ao passo que concede uma série de privilégios às mulheres, o que eles chamam de ginocracia (Bárbara, 2018). O feminismo é, nesse cenário, o grande vilão que vem empurrando os homens para a margem da sociedade. Assim, a percepção das injustiças que o feminismo acarretou aos homens é chamada de “sair da Matrix”, processo que se dá através do ritual de ingestão da redpill.
A ideia da Matrix é fundamental para a manosfera. A metáfora é inspirada no filme Matrix de 1999, e é usada para vislumbrar a sociedade como um sistema ilusório que mascara a verdade sobre as relações de poder. Como no filme, as pessoas que tomam a pílula azul (bluepill), optam por viver adormecidas em um mundo de ilusões, ao passo que os que escolhem tomar a pílula vermelha (redpill), decidem encarar o mundo em sua realidade pura. Para a manosfera, tomar a redpill é enxergar a ginocracia, sistema de poder que beneficia as mulheres.
O mercado afetivo-sexual e a seletividade feminina são aspectos fundamentais para o entendimento da Matrix. A manosfera tem como característica primordial o entendimento que os homens lutam por vagas limitadas no mercado sexual: uma matemática que diz que 80% das mulheres se relacionam com 20% dos homens (Smith et al, 2025). Um aspecto gritante disso seriam os apps de encontro, que são interpretados pelos masculinistas como uma ferramenta sociotécnica de exacerbação da seletividade feminina e sua centralidade dentro do mercado afetivo-sexual (Smith et al, 2025, p.3).
O masculinismo e as tecnologias digitais
O masculinismo é um efeito das conquistas dos movimentos feministas no tocante aos direitos sociais, individuais e reprodutivos que antes eram negados às mulheres. Seu ativismo é focado em combater os males e aflições que esses movimentos trouxeram para suas vidas, fazendo com que eles não conseguissem ter acesso a seus direitos naturais como homens, ou seja, acesso a relacionamentos, sexo, sucesso profissional e pessoal etc. Desde a consolidação do masculinismo na internet, casos de violência digital foram promovidos por esses grupos, em especial contra feministas que fazem ativismo digital, todos marcados por discursos altamente misóginos (Aronovich, 2022).
Mesmo estando fora da vida offline, as interações digitais têm um impacto direto na construção identitária. O espaço digital também exacerba a incidência de discursos menos frequentes nas relações face-a-face, como discursos ódio, já que dispõe da ferramenta do anonimato, além do distanciamento geográfico do alvo (Kilvington, 2021). Além disso, o ciberespaço facilita a associação de pessoas que se identificam, desse modo, a formação dos símbolos compartilhados se torna ainda mais profícua sem as barreiras geográficas (Ramos, 2015). As tecnologias digitais proporcionam um campo fértil para a proliferação de discursos de ódio, assim como a formação de grupos identitários que se unem por uma causa comum. Levando isso ao recorte de gênero, a manosfera está alinhada com a tendência percebida pelos estudos de comunicação online, que a muito notaram que homens costumam se expressar de forma mais agressiva e impositiva nas interações online, usando de insultos e a prerrogativa da liberdade de expressão para tal (Lilly, 2016).
A violência incel
Na constelação de diferentes identidades que constituem a manosfera destacam-se os incels: homens que estão em um nível mais denso da manosfera, completamente tomados por sentimentos niilistas e ressentidos. Os incels se reivindicam como homens que se consideram incapazes de ter relacionamentos românticos ou sexuais. Apesar de terem esse desejo, estão na base da hierarquia masculina, excluídos desse mercado afetivo-sexual. É justamente nesse nível da manoesfera que se flagra a passagem das violências online para o mundo offline. A violência se dá justamente pelo sentimento de vitimação que esses homens sentem pela ginocracia, extrapolando seus sentimentos para o mundo real, ou seja, vão efetivar suas reivindicações através da violência fora do ciberespaço.
Um dos casos mais notáveis foi o Massacre de Isla Vista, nos Estados Unidos, nas proximidades da Universidade da Califórnia Santa Barbara. Em diversos manifestos, Elliot Rodger explica suas motivações, apontando que o atentado foi resultado das injustiças experienciadas: o massacre foi uma resposta às mulheres que prejudicaram sua vida amorosa e sexual. Posteriormente, as investigações revelaram que Rodger era um incel, e frequentava assiduamente diversos espaços da manosfera. Após o atentado passou a ser reconhecido como “Cavaleiro Supremo” dos incels, sendo referenciado em diversos atentados posteriores (Vito et al, 2018). No caso brasileiro, essa associação entre massacres e a manosfera a também é pautada. Colocando o foco nos casos de Realengo e Suzano, em decorrência das investigações, descobriu-se que os perpetradores eram ligados a comunidades de supremacia masculina (Aronovich, 2022). A reação violenta de homens a eventos onde sentem que sua virilidade foi aviltada é um tema recorrente nos estudos de masculinidade. Dessa forma, uma vez que homens se vêem marginalizados no tocante a sua masculinidade, eles reivindicam atos de violência para uma compensação identitária de sua virilidade (Vito et al, 2018).
Conclusão
Associar diretamente a emergência da manosfera a eventos de violência extrema seria um erro, já que não há nenhuma evidência concreta dessa passagem, além de casos pontuais. Para além disso, a incidência desse tipo de crime precede a ascensão da manosfera no ciberespaço. Contudo, é crível apontar que ambos os fenômenos têm uma raiz social comum: o discurso da crise da masculinidade e a violência como compensação identitária masculina. Em estudos recentes, foram apontadas as relações entre eventos de violência extrema, como massacres, a violência contra mulher (Johnson et al, 2024). Entre os perpetradores foi possível constatar que grande maioria demonstrou categoricamente o consenso normativo da dominação masculina, sobretudo em suas relações com as mulheres, assim como o uso da violência como uma reafirmação da virilidade (Johnson et al, 2024). A mesma estratégia é aplicada nos casos dos ataques online perpetrados pela manosfera, através de gendertrollings — ataques misóginos sistematizados contra mulheres em plataformas online (Ging, 2019).
As tecnologias digitais, nesse cenário, aparecem como um campo apropriado pela manosfera para reproduzir e promover assiduamente padrões de gênero conservadores e discursos de ódio contra minorias sociais, mas o contrário também é real: diversos movimentos progressistas vêm criando seu espaço para disputar essas narrativas. Com isso, estudos futuros que proponham-se a estudar o fenômeno da manosfera devem se atentar à passagem dos conflitos da vida offline para a online e vice-versa. Além de se debruçarem sobre as peculiaridades que as tecnologias digitais proporcionam a essas disputas.
Referências
Aronovich, L. (2022). A trajetória e resistência do Escreva Lola Escreva. Revista Estudos Feministas, 30, e86981;
Bárbara, L. B. (2018). Investigações sobre a ignorância humana: uma introdução aos estudos da ignorância, acompanhada de um exame sociológico sobre a persistência da homeopatia e a consolidação do masculinismo ontem e hoje. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo;
Ging, D. (2019). Alphas, betas, and incels: Theorizing the masculinities of the manosphere. Men and masculinities, 22(4), 638-657;
Kilvington, D. (2021). The virtual stages of hate: Using Goffman’s work to conceptualise the motivations for online hate. Media, Culture & Society, 43(2), 256-272;
Lilly, M. (2016). 'The World is Not a Safe Place for Men': The Representational Politics Of The Manosphere. Doctoral dissertation, Université d'Ottawa/University of Ottawa;
Johnson, N. L., Lipp, N. S., Corbett-Hone, M., & Langman, P. (2024). Not so random acts of violence: Shared social–ecological features of violence against women and school shootings. Psychology of Men & Masculinities, 25(2), 113;
Ramos, J. (2015). Subjetivação e poder no ciberespaço. Da experimentação à convergência identitária na era das redes sociais. Vivência: Revista de antropologia, 1(45);
Smith, D. S., Butler-Warke, A., & Stevens, G. (2025). “Even though I’m not an incel, I’m still an involuntary celibate”: A journey in and out of inceldom. The Communication Review, 28(1), 1-25;
Vito, C., Admire, A., & Hughes, E. (2018). Masculinity, aggrieved entitlement, and violence: considering the Isla Vista mass shooting. Norma, 13(2), 86-102.