
Inteligência Artificial como ciência: como definir esse campo?
A “Inteligência Artificial”, enquanto área de produção de conhecimento, é multi-facetada, envolve uma multiplicidade de agentes, instituições, temas, teorias, técnicas e aplicações envolvidas. Como é recente e dispersa, a área desenvolveu pouca reflexão sobre si própria; pouco se sabe sobre suas dinâmicas de construção e desenvolvimento enquanto área de produção de conhecimento.
Há várias maneiras de se definir um campo disciplinar ou uma área científica e esse tem sido um problema clássico da Filosofia da Ciência e tem norteado debates de outras áreas das Humanidades.
É possível pensar nas fronteiras de uma área pelo "critério da falseabilidade” (Popper, 1972), pelo estabelecimento de um “paradigma" (Kuhn, 1962) (1), pelo compartilhamento de “programas de pesquisa” (2) (Lakatos, 1989), pelo “conjunto de problemas” resolvidos por algumas teorias e hipóteses centrais (Laudan, 1977) ou pelo compartilhamento de um “estilo de pensamento” (3) (Fleck, 1979). Vejamos cada um deles no caso da Inteligência Artificial.
De acordo com Narayanan (1986), é difícil argumentar que haja uma demarcação disciplinar em torno da Inteligência Artificial pelo critério da falseabilidade, pois, a partir desse critério, a Inteligência Artificial não poderia ser considerada uma ciência, uma vez que as suposições de progresso seriam infundadas, dado que os desenvolvimentos da área se referem a tecnologias computacionalmente implementadas. Narayanan afirma ainda que a Inteligência Artificial efetivamente opera com base em um critério “vazio” de "implementabilidade do computador”, pois as teorias de inteligência artificial são construídas a partir de conceitos computacionais que usam cálculos binários e, portanto, são necessariamente implementáveis. Ou seja, não seria possível falsear algo que foi implementado.
Definir os contornos de uma disciplina científica pelo seu "paradigma” é um desafio crível quando se trata de disciplinas paradigmáticas, como a Física por exemplo, em que a disciplina toda se orienta em torno de um único paradigma que pode ser reposto por outro. Nesse caso, o contorno é estável, já que os tópicos e métodos de exploração são unificados durante um determinado período. Em ciências não paradigmáticas, como a Sociologia, por exemplo, há várias teorias e hipóteses que coexistem, havendo poucos movimentos de unificação das teorias existentes. Há, ainda, áreas como a Inteligência Artificial, que são pré paradigmáticas, pois não estão bem estabelecidas e, portanto, consistem na aglomeração de diferentes redes ou comunidades, valores e modelos que estão espalhados. Contrariamente, a Inteligência Artificial surgiu como uma intersecção de várias áreas do conhecimento em torno de um objetivo comum.
Em se tratando de "programas de pesquisa” (Lakatos, 1989), poderíamos apontar que a Inteligência Artificial possui alguns deles, sendo os principais o programa simbólico (fortemente baseado em lógica e representação de conhecimento) e o programa neural (baseado em redes neurais). Mas outros programas também podem ser elencados aqui, como os programas baseado em agentes, os bayeseanos, etc. Assim como esperado, os programas de pesquisa alternam em importância ao longo do tempo, de modo que durante determinados períodos um programa tem prevalência sobre outros; os dois principais programas da Inteligência Artificial ilustram bem o caso. Hoje em voga, o programa neural esteve durante um longo período em baixa[4] até por volta da década de 1990 com a introdução de novos algoritmos como o back propagation, a maior disponibilidade de dados com a internet e, por fim, com o desenvolvimento das redes neurais profundas. Embora a dinâmica dos programas de pesquisa consiga descrever bem os altos e baixos das pesquisas de inteligência artificial, essa abordagem não leva em consideração os aspectos sociais que envolvem as escolhas dos pesquisadores ou comunidades de pesquisadores.
Apontando especificamente para os problemas, há a proposta de Laudan (1977) de “resolução de problemas". A partir dessa perspectiva, uma disciplina é delimitada pelo conjunto de problemas que ela quer resolver e, consequentemente, pelas teorias que mais resolvem esses problemas. No caso da Inteligência Artificial, há grandes problemas como a visão computacional, o processamento de linguagem natural, reasoning, o planejamento e a aprendizagem. Se para cada um dos problemas elencados há uma ou mais teorias que resolvem os problemas específicos, dificilmente a ideia de uma disciplina como Inteligência Artificial seria aceita. O que existiria seriam pesquisadores de visão computacional, linguistas computacionais e etc. Mais recentemente, com o êxito das redes neurais, é possível pensar uma disciplina geral de Inteligência Artificial, demarcando o que entra e o que sai dela. Um exemplo interessante é o problema de busca, um problema classicamente considerado como pertencente à Inteligência Artificial. Com o êxito das redes neurais, há o questionamento de se considerar "busca" um problema pertencente à Inteligência Artificial ou apenas um problema da computação.
A outra maneira de se pensar a formação e o contorno de uma área do conhecimento é a partir do compartilhamento de um “estilo de pensamento". Nesse sentido, esse contorno é feito a partir das pessoas que compõem e trabalham nessa área, ou seja, das comunidades e seus interesses. Assim, esses contornos podem se transformar ao longo do tempo. Essa dinâmica foi especialmente ativa no campo da Inteligência Artificial, pois, de acordo com Bibel (2018):
"Enquanto os pioneiros da IA pareciam ter uma visão clara e racional do campo como disciplina científica, com objetos e métodos de pesquisa bem definidos, isso perdeu influência sobre os contornos da IA ao longo do tempo. Os contornos do campo também foram influenciados pelo sucesso obtido na aplicação de seu conhecimento científico acumulado e pela relevância no uso que as pessoas fizeram dele na indústria e nos negócios [...] Como consequência, os contornos da IA mudaram consideravelmente durante sua curta história de pouco mais de seis décadas (p. 5143).”
Desenhar os contornos de uma disciplina levando em consideração o “estilo de pensamento” de seus pesquisadores é assumir que a epistemologia de uma disciplina é indissociável da cultura acadêmica presente no campo que a cultiva. Por isso é importante considerar também a compreensão e a percepção que os próprios agentes do campo têm da disciplina à qual estão afiliados. Glaeser (2011) associa a interpretação e a percepção dos agentes sobre um dado conhecimento aos processos de negociação presentes no campo. Trata-se de uma epistemologia política (Glaeser, 2011) reveladora dos valores, crenças, conhecimentos tácitos e práticas que estão em constante disputa dentro da própria comunidade, bem como entre a comunidade e outras instituições externas.
Pensar o campo da Inteligência Artificial a partir dessa perspectiva parece ser especialmente promissor, por não se enquadrar nas categorias dicotômicas “ciência paradigmática” x “ciência não paradigmática" e nem nas tipologias de formação disciplinar “linear” x “fractal”. A Inteligência Artificial é híbrida no que se refere à clássica categorização disciplinar de Becker & Trowler (2001), que busca conjugar tanto a dimensão epistemológica (contemplada pela ideia kuhniana de paradigma), como a dimensão social que contemplada pela ideia de “estilo de pensamento” de Fleck.
A taxonomia de Becker & Trowler (2001) ganha especial interesse por considerar o papel do conhecimento tácito na constituição disciplinar, bem como as práticas sociais envolvidas. Assim, eles classificam as disciplinas a partir de seus componentes "cognitivo" e “social”. O componente cognitivo se baseia na divisão clássica entre hard pure science x soft pure science, — por exemplo, Física e Sociologia. E hard applied sciences x soft applied sciences — por exemplo a tecnologia e a educação. O componente social se baseia na divisão entre urban x rural e convergent x divergent. A divisão convergent x divergent diz respeito ao "estilo de pensamento" de Fleck (1979), dividindo as comunidades científicas entre aquelas que têm interesses, crenças, identidades e discursos comuns (convergent) e aquelas que são ideologicamente fragmentadas (divergent). A divisão urban x rural classifica as formas de interação, organização e comunicação dentro de uma área do conhecimento. As disciplinas ditas urban mantêm fortes laços comunitários, possuem equipes de pesquisa coesas e próximas geograficamente que passaram por transformações históricas de forma simultânea. Da mesma forma, os meios de produção de conhecimento circulam de forma limitada, em journals, artigos e conferências específicas, já que isso é possível por assumirem e compartilharem terminologias, teorias e técnicas comuns. Jé em uma área do conhecimento com organização dita “rural”, em que os problemas são diversos, o padrão de produção da comunicação do conhecimento é difuso, dado que as próprias equipes de pesquisa estão espalhadas por várias áreas do conhecimento. A partir dessa taxonomia, é possível dizer que a Inteligência Artificial é divergent e rural, já que é ideologicamente fragmentada e tem padrões de produção de conhecimento e de comunicação difusos - embora já haja uma tendência de convergência disciplinar.
As diferentes taxonomias nos ajudam a caracterizar e perceber a complexidade própria da área da Inteligência Artificial. Como vimos, a Inteligência Artificial surgiu da intersecção de diferentes disciplinas, ou seja, do acordo entre membros de diferentes comunidades científicas em torno de um propósito comum: emular a inteligência humana. A partir desse primeiro momento, embora houvesse um objetivo comum, a área não encontrou convergência ideológica (portanto, pode ser caracterizada como divergent), nem teórico-metodológica (pois é pré-paradigmática). Sua capacidade de aplicação a levou a atravessar vários campos de conhecimento, tornando-a rural, já que não há uma padronização dessa produção de conhecimento, bem como não há canais verticais para a publicização do mesmo. Há uma sobreposição de áreas e focos, criando vários canais paralelos de produção e divulgação científica. Nesse sentido, os processos de colaboração, discussão, concordância e competição não são universais, mas acontecem de forma localizada. Como consequência, as fronteiras disciplinares mudam rapidamente e a interdisciplinaridade acaba ocorrendo apenas em algumas instâncias institucionais. Como conhecimento objetivo e conhecimento tácito estão intimamente ligados na formação de uma área do conhecimento, essa fragmentação acaba se refletindo na própria identidade da comunidade científica envolvida.
Uma vez caracterizada o tipo de produção científica da pesquisa de base da inteligência artificial, é válido retomar a discussão recentemente levantada por Cozman (2021) sobre os objetivos e estilos de abordagem à inteligência artificial dentro dessa área disciplinar. Como bem ilustra Cozman (2021), na década de 1980, os termos scruffy (desengrenhados) e neat (empertigados) surgiram para caracterizar esses dois estilos: os “desengrenhados” seriam aqueles pesquisadores que possuem uma abordagem mais empírica que prescinde de uma base teórica única e se abre para aspectos empíricos observados na inteligência humano; enquanto os “empertigados” buscam abstrações e princípios gerais mais organizados do que aquilo que é encontrado no mundo real. Cozman (2021) observa a recente ênfase nos modelos neurais que partem de uma imensidão de dados do mundo real sem que seja possível explicar seus resultados. Esse tipo de movimentos disciplinares serão analisados a partir dos dados que coletaremos. A partir deles, veremos como perguntas metodológicas postas pela disciplina - tal como sugere Cozman (2021), “faz sentido coletar um milhão de vídeos de pessoas fritando ovo para aprender a fritar um ovo – ou é melhor simplesmente pedir por instruções formais sobre como fritar um ovo?”- acabam por orientar diferente caminhos de pesquisa.
Como vimos, há perguntas não respondidas sobre a caracterização da Inteligência Artificial como campo de produção de conhecimento, dada a complexidade que a caracteriza tanto do ponto de vista epistemológico, quanto sócio-político. O que a torna não apenas um rico campo de investigação sociológica, mas sobretudo oferece uma justificativa para que haja uma reflexão sistemática e analítica sobre sua natureza e suas dinâmicas.
Notas
(1) “Paradigma” não tem sentido único na obra de Kuhn. A grosso modo, para Kuhn, a ciência se desenvolve pela criação e abandono de paradigmas, ou seja, de modelos consensuais adotados pela comunidade científica de uma época. Quando estabelecido um paradigma, os cientistas passam a desenvolver conceitos, noções, problemas e descobertas partir e em torno dele. Em um dado momento, esse paradigma pode ser questionado ou desafiado, levando a uma crise que mobiliza os cientistas para resolver as anomalias desse paradigma. Quando não há mais meios para resolver essas anomalias, esse paradigma pode ser abandonado em detrimento de outro. Isso é denominado por ele de “revolução científica”. Não há, aqui, necessariamente uma ideia de progresso de que um paradigma melhor sucede um pior. O novo paradigma apenas é mais adequado às necessidades do contexto sócio-histórico no qual os cientistas estão inseridos.
(2) Para Lakatos, um “programa de pesquisa” é formado por um núcleo duro que corresponde às hipóteses e teorias, e a uma heurística que corresponde aos métodos observacionais. Sempre há mais de um programa de pesquisa concorrendo para explicar ou resolver um conjunto problemas observados. Em contraposição às “revoluções cientificas” de Kuhn, Lakatos entende que há programas de pesquisa simultâneos e concorrentes. Assim, história da ciência não seria a história de teorias sucessivas, como propõe Kuhn, mas de teorias (e de cientistas que se reúnem em torno delas) concorrentes.
(3) De acordo com Fleck, o estilo de pensamento é constituído a partir de atividades sociais desenvolvidas por uma comunidade, assim o conhecimento não avança por meio de grandes rupturas, como propõe Kuhn, mas de modo incremental, quando ações e ideias trafegam de diferentes modos entre estilos de pensamento criados pelas diferentes "comunidades de pensamento". Com isso, Fleck apesar de ser médico e biólogo, aponta propõe uma Sociologia da comunidade científica.
[4] Mais precisamente, do momento da publicação da crítica de Minsky e Papert, Perceptrons (1969).
Referências
BIBEL, Wolfgang & FURBACH, Ulrich (2018). Formation of a Research Discipline Artificial Intelligence and Intellectics at the Technical University of Munich. KI - Künstliche Intelligenz.
BECKER, T. and TROWLER, P. R. (2001). Academic Tribes and Territories: Intellectual Enquiry and the Culture of Disciplines. Buckingham: Open University Press
COZMAN, Fabio (2021). No canal da Inteligência Artificial – Nova temporada de desgrenhados e empertigados. Estudos Avançados, 35 (101).
FLECK, Ludwik (1979). Genesis and Development of a Scientific Pact. Chicago: University of Chicago Press.
KUHN, Thomas (1982). The Structure of Scientific Revolutions. University of Chicago Press, Chicago.
LAKATOS, Imre. La Metodología de los programas de investigacíon científica. Madrid. Alianza, 1989.
LAUDAN, Larry (1977). Progress and Its Problems: Towards a Theory of Scientific Growth. Berkeley: University of California Press.
NARAYANAN, Ajit. (1986). Why AI Cannot Be Wrong. In.: Gill (ed.) Artificial Intelligence for Society. Chichester: John Wiley and Sons, pp. 43-53.