Sobre o colonialismo digital e as pedagogias decoloniais

Diante do avanço no cenário de plataformização na educação e da coleta indiscriminada de dados, que subsidia os avanços da inteligência artificial, a proposta desta publicação é trazer conceitos como o colonialismo digital e pedagogias decoloniais, com o objetivo de contribuir para a discussão e buscar por caminhos para a decolonialidade digital. As plataformas estruturam atualmente o acesso à internet e determinam as regras de circulação de dados e a interação com a informação. O colonialismo digital é definido pela extração e pela manipulação de dados de usuários da rede, praticadas pelas grandes corporações que, em sua maioria, têm sua base no Vale do Silício, nos Estados Unidos, com o objetivo principal de lucro. A perspectiva chamada de colonialismo digital (Kwet, 2021) trata de uma forma estrutural de dominação, viabilizada pelo controle do software, do hardware e da conectividade, exercido por uma nova forma de colonização corporativa capitaneada pelas Big Techs ou GAFAM (1):

Hoje, no Sul Global, as “Veias Abertas” de Eduardo Galeano são as “veias digitais” que cruzam os oceanos, conectando um ecossistema de tecnologia que pertence e é controlado por um punhado de corporações cujas sedes ficam, principalmente, nos Estados Unidos. (Kwet, 2021)

Kwet (2021) detalha a arquitetura do colonialismo digital pelos serviços amplamente usados na internet, controlados atualmente pelas Big Techs, como por exemplo: serviço de busca (Google), navegadores (Google Chrome, Edge /Microsoft, Safari/Apple), sistemas operacionais de celulares (IOS/Apple, Android/Google), sistemas operacionais (Windows/Microsoft) e programas de “escritório”, como editores de texto e apresentações (Office/Microsoft, Google Drive), serviços de armazenamento em nuvem (Amazon, Google, Microsoft), redes sociais (Facebook, Twitter), serviços de transporte (Uber, Lyft), rede social corporativa (LinkedIn), serviços de streaming de vídeo (Google, Youtube, Amazon, Apple, Netflix, Hulu), serviços de propaganda online (Google, Facebook), dentre outros. Segundo o autor, essas empresas são atualmente os novos donos de praticamente todo o ecossistema digital disponível.

O autor menciona iniciativas de uso software livre, particularmente do Sul Global, que foram substituídas por plataformas proprietárias quando da intervenção das grandes empresas de tecnologias. Comenta também que, nos países do Sul, a maior parte do acesso à internet acontece com celulares e, como os pacotes de dados são caros, algumas redes sociais oferecem acesso gratuito com exigência de autenticação nelas, como se a internet fosse a rede social. Além disso, é importante pontuar a derrubada do Decreto n. 8.135/2013 (Brasil, 2013) que previa que “[...] as comunicações de dados da administração pública federal deveriam ser realizadas por redes de telecomunicações e serviços de tecnologia da informação fornecidos por órgãos ou entidades da administração pública federal” (Cruz; Venturini, 2020, p. 1.071). Esse decreto foi revogado em dezembro de 2018 pelo então presidente interino Michel Temer, e o novo Decreto n. 9.637/2018 (Brasil, 2018b) não propunha orientações específicas sobre a conduta nessa frente. Desde então, houve um grande avanço no uso dos servidores do GAFAM nas universidades federais brasileiras, mas a mesma problemática de acesso à internet permanece, via redes sociais, vivida durante a pandemia no Brasil. Este avanço foi pontuado pelo Observatório Educação Vigiada em 2020 (2).

Diante desse contexto, onde o digital e a internet moldam o acesso e o armazenamento de informações, além da influência na criação de conteúdo digital e nas práticas de aprendizagem, torna-se urgente buscar novas maneiras de pensar o digital na educação. Um dos caminhos que podem ser explorados para a ação educacional é o das pedagogias decoloniais. De acordo com Walsh (2013), as pedagogias decoloniais são um conjunto de pedagogias que trabalham com a ancestralidade, a identidade, os conhecimentos, as práticas das civilizações excluídas do pensamento europeu ou daquelas que marginalizam os saberes não hegemônicos. A autora questiona a centralidade do pensamento hegemônico eurocêntrico e desafia a pensar a partir de outros sujeitos, de outros lugares e outras concepções do mundo. Ela explicita:

São esses complexos momentos de hoje que provocam movimentos de teorização e reflexão, movimentos não lineares, mas sinuosos, não ancorados na busca ou projeto de uma nova teoria crítica ou mudança social, mas na construção de caminhos — de ser, pensar, olhar, ouvir, sentir e viver com sentido ou horizonte decolonial. (Walsh, 2013, p.24) (3).

Na prática, as pedagogias decoloniais podem se traduzir em uma série de ações que buscam descolonizar o pensamento e as práticas educacionais. Algumas dessas ações incluem: 

(1) reconhecimento da diversidade: a pedagogia decolonial reconhece a diversidade cultural, étnica e racial dos sujeitos envolvidos no processo educacional. Ela valoriza as diferentes formas de conhecimento e saberes produzidos por esses sujeitos; 

(2) desconstrução do eurocentrismo: a pedagogia decolonial busca desconstruir o eurocentrismo presente nas práticas educacionais. Ela questiona a centralidade do pensamento hegemônico eurocêntrico e propõe uma abordagem mais plural e diversificada;

(3) valorização da ancestralidade: a pedagogia decolonial valoriza a ancestralidade dos sujeitos envolvidos no processo educacional. Ela reconhece a importância da história e da cultura dos povos originários, afrodescendentes e demais grupos historicamente marginalizados; 

(4) diálogo intercultural: a pedagogia decolonial propõe um diálogo intercultural entre os diferentes sujeitos envolvidos no processo educacional. Ela busca promover o respeito mútuo e o reconhecimento das diferenças culturais.

Enfatizando o conceito de colonialismo digital, a perspectiva dominante é a norte-americana, representada pelas grandes corporações do Vale do Silício ou o GAFAM. A hegemonia do saber pode se traduzir na estrutura de filtros e algoritmos opacos, impostos pelas principais plataformas, que determinam o acesso à informação e aos saberes compartilhados. Furar as bolhas exige conhecimento do funcionamento de tais filtros e de ferramentas que viabilizem acesso a uma diversidade maior de conteúdo. Como as tecnologias digitais são ferramentas políticas (Winner, 1986), elas determinam as formas de ser na interação com o outro. 

Segundo Zanatta (2019), pode-se dividir os dados que circulam na internet em três categorias: cedidos, tomados e inferidos. Os dados cedidos são os dados fornecidos e acordados com o fornecimento a uma instituição, ou um site. São aqueles cedidos quando se aceitam os termos de uso que coletam dados, tanto em software (plataforma) como em hardware (celular). Os dados tomados são basicamente os metadados que são captados a partir de dispositivos digitais: o tempo e a localização, os cliques do mouse, o tempo de permanência em uma foto ou em uma página, a frequência de determinadas rotinas etc. E, por fim, os dados inferidos resultam do cruzamento de dados cedidos e tomados, que permitem inferências e definição de perfis psicológicos, de consumo, destinados aos mais diversos fins. Essas inferências constroem a chamada identidade digital, que  determina o que se recebe como propaganda e conteúdo em geral na navegação, em buscadores ou qualquer plataforma que tenha espaço para propaganda online. Não se tem controle sobre a própria identidade digital e como ela é classificada, como se viu no caso Cambridge Analytica (4). As identidades criadas a partir de estruturas algorítmicas podem se traduzir na colonização do ser.

É importante ressaltar que a colonialidade do poder (Quijano, 2009) opera em relação com as colonialidades do saber e do ser. A colonialidade do saber (Lander, 2005) implica a rejeição de diversas maneiras de compreender o mundo, a humanidade e a vida, provenientes de diferentes epistemes. Ela resulta na supressão de conhecimentos e na subjugação de povos e populações que não se alinham com a perspectiva eurocêntrica, moderna e capitalista. A colonialidade do ser (Maldonado-Torres, 2008) refere-se à utilização do conhecimento hegemônico para reprimir subjetividades e formas de expressão humanas que não tenham origem na Europa. Logo, isso impacta as práticas sociais historicamente estabelecidas e consolidadas pelo poder dominante.

Considerando a possibilidade de atuação a partir de pedagogias decoloniais, segundo Menezes de Souza (2021), elas devem abordar o conhecimento por histórias plurais, promover a desnaturalização do pensamento hegemônico, tornando visíveis outros saberes, conceitos e mundos possíveis. O autor define, então, etapas para uma pedagogia decolonial, sendo a primeira delas (1) identificar a colonialidade: trazer o corpo de volta, ou reatribuir aos sujeitos invisibilizados os dizeres e saberes coloniais; ressituar ou recontextualizar os saberes que passam por universais. Além disso, identificar o colonialismo: como o colonialismo aparece na própria leitura, pesquisa e interesses; de onde vêm as referências usadas. A segunda etapa seria (2) interrogar a colonialidade: por que existem desigualdades e diferenças? Por que alguns seres humanos “valem mais” que outros? Já a terceira etapa seria (3) interromper a colonialidade: como é possível minimizar os efeitos da desigualdade e equilibrar o desequilíbrio? A ação é imprescindível, segundo o autor, diante da identificação e da interrogação à colonialidade. 

Como as etapas propostas por Menezes de Souza (2021) sobre as pedagogias decoloniais podem servir de base para a perspectiva da decolonialidade digital? No que diz respeito ao reconhecimento do colonialismo digital, que tipo de análise pode ser feita dos ambientes e recursos digitais que utilizamos? Quais perguntas podem ser feitas para a estrutura digital com a qual se interage? As atividades propostas se estruturam a partir do reconhecimento da diversidade como um valor? Elas desafiam os estudantes a pensarem a partir de outros sujeitos, de outros lugares e de outras concepções do mundo? As atividades educacionais reconhecem a ancestralidade como valor? Há propostas previstas no currículo, que visam a desconstrução do eurocentrismo, e/ou, no caso do colonialismo digital, do poder concentrado nas Big Techs? As práticas promovem o diálogo intercultural entre os diferentes sujeitos envolvidos no processo educacional? Busca-se promover o respeito mútuo e o reconhecimento das diferenças culturais, principalmente levando em consideração as bolhas de informação na internet? As práticas educacionais promovem o envolvimento do estudante com a sua realidade local? As interações estão a serviço de uma relação decolonial com o saber em jogo, com os seres humanos e os seres vivos implicados em determinado contexto?

A busca pela decolonialidade digital, por recursos que desafiam a estrutura plataformizada da internet, pelo bem-estar e equilíbrio no uso de telas, além da busca por movimentos coletivos voltados à uma lógica decolonial do digital, comporiam ações relevantes para interromper o colonialismo. Este movimento, na educação, pode se constituir através da instrumentalização voltada para o uso de recursos e para a compreensão dos mecanismos envolvidos em sua concepção. Mas principalmente uma ação educacional voltada para a decolonialidade digital deve privilegiar interações que promovam a crítica, o conhecimento historicamente construído e a ancestralidade; o contexto da geração e produção de dados e outras ações que valorizem a equidade, os saberes locais e plurais, o diálogo e a diversidade. Estas ações precisam ser acompanhadas de regulamentação e políticas públicas que viabilizem cenários mais promissores.

Notas

(1) GAFAM: Google, Apple, Facebook (Meta), Amazon e Microsoft.

(2) OBSERVATÓRIO DA EDUCAÇÃO VIGIADA. [Portal]. Disponível em: https://educacaovigiada.org.br/pt/sobre.html. Acesso em: 19 jun. 2024.

(3)  Tradução da autora do original “Son estos momentos complejos de hoy que provocan movimientos de teorización y reflexión, movimientos no lineales sino serpentinos, no anclados en la búsqueda o proyecto de una nueva teoría crítica o de cambio social, sino en la construcción de caminos —de estar, ser, pensar, mirar, escuchar, sentir y vivir con sentido o horizonte de(s)colonial.” (Walsh, 2013, p.24).

(4) Cambridge Analytica (UK), Ltd. (CA) foi uma empresa privada que combinava mineração e análise de dados com comunicação estratégica para o processo eleitoral. Em 2016, tornou-se conhecida como a empresa de análise de dados e inteligência estratégica que trabalhou para a campanha presidencial de Donald Trump, nos Estados Unidos, e também para a do Brexit, visando a saída do Reino Unido da União Europeia. O papel da CA e o impacto sobre essas campanhas têm sido contestados e são objeto de várias investigações criminais em andamento, tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido. Mais informações disponíveis em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cambridge_Analytica. Acesso em: 15 dez. 2023.

Referências 

Brasil. Decreto n. 8.135, de 4 de novembro de 2013. Dispõe sobre as comunicações de dados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, e sobre a dispensa de licitação nas contratações que possam comprometer a segurança nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 nov. 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d8135.htm. Acesso em: 15 dez. 2023.

CRUZ, Leonardo; VENTURINI, Jamila. Neoliberalismo e crise: o avanço silencioso do capitalismo de vigilância na educação brasileira durante a pandemia da Covid19. Revista Brasileira de Informática na Educação (RBIE), Porto Alegre, v. 28, p. 1060-1085, dez. 2020. Disponível em: http://milanesa.ime.usp.br/rbie/index.php/rbie/article/viewFile/v28p1060/6752. Acesso em: 15 dez. 2023.

KWET, Michael. A ameaça nada sutil do Colonialismo Digital. Outras Palavras, São Paulo, 15 mar. 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/a-ameaca-nada-sutil-do-colonialismo-digital/. Acesso em: 15 dez. 2023.

LEANDER, Kevin. Thinking Beyond a Multimodal Framing of Moving Bodies in Language and Literacy Research. [Palestra em vídeo, 2h57’38”]. In: GRUPO DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA EM LÍNGUAS ESTRANGEIRAS o GEELLE,9, São Paulo/USP, 7 dez. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f1ojjmRSZCc. Acesso em: 15 dez. 2023.

MENEZES DE SOUZA, Lynn. Para uma Pedagogia Decolonial. In: LINGUÍSTICA APLICADA (CRÍTICA). Universidade de Brasília, 2021a, Brasília-DF.

NYABOLA, Nanjala. Digital Democracy, Analogue Politics: How the Internet Era is Transforming Politics in Kenya. London: Zed, 2018. Disponível em: https://www.bloomsburycollections.com/monograph?docid=b-9781350219656. Acesso em: 15 dez. 2023.

WALSH, Catherine. (ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013.

WINNER, Langdon. Do Artifacts Have Politics? In: WINNER, Langdon. The Whale and the Reactor: A Search for Limits in an Age of High Technology. Chicago: The University of Chicago Press, 1986. p. 19-39.

ZANATTA, Rafael. A repolitização do uso de dados depois de 15 anos de tecnotopia. [Entrevista concedida a] Ricardo Machado. Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 17 out. 2019. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/593533-a-repolitizacao-do-uso-de-dados-depois-de-15-anos-de-tecnotopia-entrevista-especial-com-rafael-zanatta . Acesso em: 15 dez. 2023.